António Lobo Antunes - Até Que as Pedras se Tornem Mais Leves Que a Água PT (2017)

(Carla ScalaEjcveS) #1

isso é evidente, quando se está distraído acontece sem que a gente se aperceba, mal
topamos que vergonha, a minha mulher quase preocupada



  • Algum problema?
    e eu, de imediato, desejando que o cotovelo comigo para sempre e olha, foi o destino
    quem quis, eu nenhum problema por amor de Deus, estou ótimo e ainda bem que a
    palavra amor me saiu pegadinha à palavra Deus a fim de que ela não a tomasse como
    uma falta de respeito ou um atrevimento, a palavra amor logo ao segundo dia de certeza
    que assusta ou pelo menos faz esticar a orelha, põe-nos tensos, à es, tenho a certeza
    que não vou ser capaz, preita, prudentes, em guarda, amor depressa demais um abuso,
    é necessário paciência, não dar pressa nem assustar as pessoas

  • De certeza que não vou ser capaz
    fazer tudo pé ante pé, delicado, prudente, ir avançando aos poucos como quem não
    avança, um toque aqui, um toque ali, ao de leve, casual, palavra de honra que não foi
    de propósito, já lhe deve ter acontecido a si e há de voltar a acontecer, era o que faltava
    que de propósito, de qualquer maneira perdoe embora não me caiba culpa alguma,
    gestos automáticos, atitudes inconscientes, o que não arranjo coragem de fazer
    realizando-se apesar de mim, como o corpo nos trai, isto do

  • Cavalinho cavalinho
    ao fim de um quarto de hora cansa, doem-me os músculos aqui, doem-me os pés e a
    minha filha que não percebe isso

  • Mais
    tão impiedosas as crianças, tão egoístas

  • Mais
    completamente indiferentes ao que sentimos a teimarem, impávidas

  • Mais
    o apontador de metralhadora para mim arrastando a arma no chão

  • Não me leve a mal mas o que fazemos aqui meu alferes?
    com vontade de abandoná-la, parti-la

  • O que fazemos aqui meu alferes?
    e tens razão, o que fazemos aqui de fato com a certeza de que não vamos ser capazes,
    a minha mulher de repente parada, de repente a encarar-me, de repente, imagine-se, a
    pegar-me na mão

  • Porque se culpa tanto?
    isto no meio da rua com pessoas a passarem, dois homens tirando uma máquina de
    lavar de uma furgoneta, um casal de velhas com carrinhos de compras, cada qual com o
    seu cãozito pela trela a cheirarem pneus, concentrados, graves, um deles pequeno,
    branco, o outro assim assim, ambos horríveis, ambos com olhos de gelatina desfocada
    e narizes que tremiam, a minha mulher para a gente

  • O que fazemos aqui meu alferes?
    não, a minha mulher para mim

  • Por acaso simpatizo consigo
    e eu palavra de honra com ganas de a sentar nos meus joelhos

  • Cavalinho cavalinho

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