António Lobo Antunes - Até Que as Pedras se Tornem Mais Leves Que a Água PT (2017)

(Carla ScalaEjcveS) #1

  • Já que tens de ser preto que sejas um preto jeitoso
    e, palavra de honra, um beliscãozinho no queixo com o corpo a cheirar ao mesmo
    tempo a perfume e àquele não sei quê de quando, de ano a ano, te apetece, os dedos
    dos teus pés quase junto à minha cara, não direitos, dobrados, por favor arranha-me o
    peito com eles, arranha-me o pescoço, ordena-me

  • Mais fundo
    a mastigares o travesseiro, de perfil para mim, com uma veia do pescoço a aumentar,
    os bicos do peito de repente tão duros e os olhos, sem me verem, ordenando

  • Agora
    Sua Excelência erguida sobre os cotovelos a lamber-me o peito, a morder-me

  • Bate-me
    o meu pai a segurar o ombro do guia

  • Trouxeste-nos a uma armadilha cabrão
    enquanto o segundo guia, largando o canhangulo, escapava mata fora até cair aos
    poucos, sob a metralhadora, a uns dez ou quinze metros de nós, um pé calçado e o outro
    descalço enquanto o corpo girava, um soldado tombou sobre ele com a faca e o porco
    ou o guia descalço a gritar que se ouvia na aldeia assustando os milhafres da serra, um
    gavião rente às capoeiras, a minha mãe a chamar-me para a ajudar a levantar-se numa
    voz que quase desistia a cada palavra, as garras de Sua Excelência colchão dentro

  • Meu Deus
    e os dentes dela enormes, a minha mãe a procurar os chinelos com os pés

  • Isto custa
    de casaquinho de malha por cima da camisa de renda e os ossos das mãos
    espalmados sobre o casaquito, lembro-me de a ouvir cantar, lembro-me da minha irmã
    ao seu colo, já séria, já ausente, sempre escondida de nós, mesmo no meu emprego
    quando dizia

  • Adeus
    e se afastava corredor fora, longe de mim e não longe de mim, nós nunca longe um
    do outro, que coisa, o pelotão do meu pai a entrar capim dentro em leque, o guia de
    joelhos a pedir

  • Não
    de mãos postas à medida que o meu pai, não, o porco, não, o meu pai, de focinho
    num balde, o comia, uma bala de gê três na barriga, uma bala de gê três no peito, o
    braço de Sua Excelência nos meus ombros não por amor, exausto, a minha mãe

  • Se me voltasse um bocadinho o apetite
    e agora que as pedras sem peso, desaparecidas da radiografia, a fome vai voltar
    senhora, acredite, os turras começaram a atirar de umas árvores à esquerda que a seção
    de um furriel contornava à rajada, um cão apareceu e desapareceu, um dos tornozelos
    de Sua Excelência, meio adormecido, coçava o outro lentamente, se o tentasse beijar
    um resmungo confuso

  • Ainda não estás satisfeito?
    quando era pequeno e acordava a meio da noite a chorar a minha mãe pegava em
    mim e levava-me para a cama dela onde o calor dos seus corpos me sossegava, em África
    o homem que morava conosco dormia numa esteira junto à porta e não conversava

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