- Terei feito alguma coisa?
sem que me lembrasse de nada, nunca arranjei problemas com ninguém, nunca tratei
mal fosse quem fosse e a minha mãe numa espécie de raiva, com o postal ou lá o que
era a tremer - Isto é para ti
o meu pai a ler o jornal, demasiado interessado nas notícias para nos dar atenção,
via-lhe apenas a calvície que a lâmpada do teto arredondava e a parte de cima dos
óculos, os dedos que sobravam numerosíssimos, jamais lhe notei tantas falanges a
segurarem as páginas e um dos sapatos a espalmar muito depressa a biqueira no chão,
eu a segurar o papel olhando para eles - O que foi?
lembro-me de mim admirado, franzido, mirando ora um ora outro sem dar grande
importância ao que tinha na mão - O que foi?
e eles calados, eu com vinte e dois anos, em março vinte e três, na minha ideia nessa
altura já um homem completo, é óbvio, na minha ideia de agora um catraio e era o
catraio quem perguntava - O que foi?
a pensar numa jarra partida e que me lembrasse não partira nada ou numa peça mal
posta no estendal que deixou nódoas nos lençóis dos vizinhos de baixo, já trabalhava, já
era casado, morávamos todos no mesmo apartamento diminuto, os meus pais no
quarto deles e a minha mulher e eu no que fora sempre o meu quarto ou seja um sítio
minúsculo de modo que se escutavam os barulhos todos, no caso de me apetecer eu
para a minha mulher, baixíssimo - Achas que já estão a dormir?
porque era quase sempre a mim que apetecia, natural, eu o macho e ela aceitava ou
não, no caso de não aceitar - Ainda agora ouvi uma tosse
no caso de aceitar uma palavra que não conseguia distinguir se - Amor
ou se - Cuidado
e, pelo que conheço dela, mais inclinado para - Cuidado
do que para - Amor
aprendendo à minha custa o que achava impossível existir ou seja que não há
nenhuma parte do corpo que não tenha bicos de pés e que até em bicos de pés se
conseguem relações a que um primo da minha mãe, amigo de palavras trabalhadas,
chamava frutuosas, e enquanto eu experimentava a roupa civil, em Luanda, diante de
um espelho com nódoas, o meu pai a censurar-me na aldeia, com menos naperons do
que agora - Não estavas melhor conosco do que em África?
carla scalaejcves
(Carla ScalaEjcveS)
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