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Disse que saíamos às três e como de costume
(alguém ainda alimenta ilusões?)
Sua Excelência embora tirando a tarde no emprego só se dignou aparecer às seis, seis
e onze para ser mais exato que o meu relógio não mente, pelo preço que paguei por ele
também era o que faltava e além disso os ponteiros um ar tão seguro que nem me atrevo
a contrariá-los, contraria-os Sua Excelência que pelo menos lata, raios a partam, tem
para dar e vender
- Essa tua porcaria suíça que ainda por cima custou um balúrdio adianta-se sempre
e entre as três e as seis e onze
(conferi no telemóvel e estava certo, o que será o tempo aliás, eis-nos diante de uma
questão que nos levaria longe)
estive sentado, de mala fechada, prontinha, ao lado da poltrona, a única que temos
e não joga
(foi escolhida por ela claro, para quem o problema do tempo, quase todos os
problemas de resto menos um cabelo branco, que eu não vejo, à frente) - Olha-me esta miséria
(é igual ao litro)
com o sofá de três lugares e a marca de gordura da nuca de Sua Excelência numa das
almofadas, aquela onde em geral se espoja - Por amor de Deus dá-me descanso agora
para a novela, de joelhos dobrados sob o corpo na sua vocação de metro articulado,
se a pusesse como contorcionista no circo não havia nesta casa problemas de dinheiro
se é que pode chamar-se casa a três assoalhadas em baixo e em cima, aqui conosco,
pelo menos o autoclismo da madame a descarregar água no interior da minha cabeça e
a caramela do sujeito de baixo acordando-me aos gritos noite sim noite não - Ai Carlos ai Carlos
parecia que puxava à bomba, dessas de alavanca dos poços, a calcular pelos estalos
dos parafusos da cama, o Carlos que encontrava às vezes na entrada do prédio a
distribuir à socapa, espiando o elevador e as escadas, a publicidade do correio dele pelas
caixas de correio em torno, equitativo, um papelinho nesta, um papelinho naquela de
modo a não termos ciúmes de ninguém, o seu sentido de justiça comovia-me a ponto
de refrear um - Ai Carlos Carlos
que já me saía dos lábios em coração, portanto eu três horas e onze minutos a
aboborar na poltrona interrompendo-me de quando em quando para excursões à janela
a espiar a rua e de Sua Excelência, um dos passeios ao sol e o segundo à sombra já que
todas as ruas coxeiam, nem sinal de modo que se calhar um amante, se calhar uma loja
de roupa, tudo pesado prefiro os amantes porque sempre dão dinheiro enquanto as
lojas de roupa tiram, quer-se dizer tiram-me a mim porque já se sabe que quem paga é
aqui o necas, sempre o necas claro, para que serve ele e como entre as três e as seis
uma eternidade nos intervalos de me apetecer estrangular Sua Excelência com o fio
dental com que à noite se aperfeiçoa escarafunchando-se, inclinada sobre o lavatório,