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A única coisa que ouvi ao acordar na casa da aldeia foi o ponteiro dos minutos do
relógio da cozinha às voltas na parede zumbindo baixo a tentar dizer o que eu não
entendia, esforço-me tanto por perceber as coisas e não consigo senhores, o meu pai
para mim
- Rapaz
não - Filho
nunca me tratou por - Filho
tratava-me por - Rapaz
sempre, Sua Excelência claro a insinuar - Não se considera teu pai
trouxe-te de África por solidão ou como quem pretende uma lembrança, uma prova
qualquer que lá esteve ou então por remorso - Ao menos este não mato
mas não por amor, não penses nem por um momento que por amor a ti, uma espécie
de troféu vivo que ele exibia - O meu rapaz
não - O meu filho
porque nenhum preto conhecia ao certo os pais, pode ser este, pode ser aquele, pode
ser um homem de passagem que pagou à mãe um cobertor ou uma cabra ou nem
sequer pagou, apanhou-a a lavar roupa no rio, é claro que houve um homem a morar
no quimbo antes da tropa chegar mas outros homens antes desse moraram ali
igualmente, a diferença é que este a que chamo - Pai
não se foi embora como os restantes, trouxe-me consigo sempre, discutiu em Luanda
com os funcionários brancos, escreveu papéis, entregou dinheiro, comprou-me roupa
de branco, viajou comigo no barco, dormia ao meu lado, impedia que me troçassem,
quando adoeci de paludismo não me largou a cama, o médico para ele - Você é mais mãe que pai não se rale que o garoto está quase bom amigo
e não sei se gosto dele ou não gosto, habituei-me, arranjou maneira de eu comer com
os oficiais, não com a tropa, num cantinho da mesa, numa almofada sobre a cadeira a
fim de chegar aos talheres, corrigia-me os gestos, se o capitão para ele - Aiué mamã
zangava-se, uma ocasião abraçou-me de olhos esquisitos porque eu sem querer disse - Pai
a última vez antes da doença da mulher em que os olhos ficaram esquisitos, quer
dizer mais turvos, quer dizer pequeninos, comecei a esquecer a língua, os quimbos,
meteu-me na escola, zangou-se com a professora - Não é inteligente como?