António Lobo Antunes - Até Que as Pedras se Tornem Mais Leves Que a Água PT (2017)

(Carla ScalaEjcveS) #1
e mudou-me de escola, às vezes a meio da noite levantava-se aos gritos


  • Para os abrigos depressa
    com a minha mãe a acalmá-lo em vão

  • Já não estás lá estás em Lisboa deita-te
    ele sem a ouvir

  • Protegeste o miúdo?
    de maneira que me vai custar ter de matá-lo amanhã senhor quando chegarem o
    porco e as facas compridas, sei que tenho de matá-lo e não queria matá-lo, queria ficar
    consigo na serra, queria a gente os dois a escutarmos os texugos

  • Não ouves?
    a trote entre as videiras, se acontece ele sorrir-me

  • Aiué mamã
    sinto um aperto aqui e uma voz que não chega a escutar

  • Aiué Calunga
    porque lhe espetei a faca grande no pescoço e os brancos a correrem para mim

  • Cabrão
    incapazes de entenderem que gostávamos um do outro, que eu tinha de fazer aquilo
    e ele de aceitar que eu fizesse aquilo para que tudo certo finalmente e nós os dois em
    paz, pai e filho sem ninguém a separá-los, eu

  • Pai
    e ele

  • Miúdo
    o quimbo intacto e a minha mãe com orelhas e mãos, a minha mãe

  • Muana
    e eu o muana dos dois, a mulher do meu pai sem me tocar, compreendendo, a filha
    do meu pai compreendendo, degolem-me o pescoço sobre o pescoço dele, encham as
    minhas tripas conforme enchem as suas, cozinhem-nos, comam-nos, ofereçam as
    nossas patas a um vizinho, os nossos braços a outro, não me coloquem no cemitério
    convosco, larguem o que sobrar aqui e vão-se embora depressa esquecidos da gente ou
    talvez, calunga, que os mabecos e as hienas e esses pássaros brancos de bico curvo a
    chegarem por fim, a aldeia tão deserta como o quimbo de onde venho, apenas dois ou
    três homens idosos, de boné, que resistem na aldeia à sombra de um muro, imóveis, à
    espera, os ciganos a passarem lá em cima na crista da serra e o outono a chegar cinzento,
    castanho, baço, com as primeiras chuvas lentas, o primeiro frio, ficará o ponteiro do
    relógio da cozinha às voltas na parede, cada vez mais apagado, mais lento, sem dizer
    nada já, imobilizando-se a pouco e pouco e quando parou o tempo cessou de existir,
    substituído pela sombra enorme da serra ou o reflexo do Tejo nas nuvens, no princípio
    de novembro, quando tudo parece uma morte triste, com um velho e uma criança à
    espera das perdizes de manhã num valado e os pássaros palpitam um a um, surgindo
    das ervas a espreitarem em torno com um só olho desconfiado e sério, a última coisa
    que ouvi ao acordar na casa da aldeia, mesmo na ponta do primeiro morrozito da serra,
    para além do ponteiro, foi a mulher do meu pai
    (pronto, digo pai)
    a respirar as suas pedras contra a morte na cama, pedras que o me lhe mente

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