António Lobo Antunes - Até Que as Pedras se Tornem Mais Leves Que a Água PT (2017)

(Carla ScalaEjcveS) #1

  • Estavas a falar com quem?
    e eu, demorando a reconhecê-la, a olhá-la, eu calado sorrindo-lhe ao encontrá-la
    inclinada para mim, eu

  • Deve ter sido um sonho
    o médico que controlava os destemperos da minha mulher a sossegá-la

  • Vêm um bocado malucos da guerra minha senhora é uma questão de paciência isso
    passa
    como se tivesse lá estado, como se tivesse visto, com se o houvessem deitado no
    helicóptero com um frasco de soro a correr para a veia e o médico

  • Graças a Deus tudo se esquece
    atrás do piloto e do mecânico ocupado com uma alavanca

  • Mais depressa porra
    como se tivesse morrido, apesar de uma espécie de sorriso e de uma voz fraquinha

  • Até já
    e um soldado a secar-se na manga, daqui a nada o porco morto, nenhum gemido,
    nenhum sopro, subir para um escadote a fim de o desprender da argola e estendê-lo
    sobre uma serapilheira no chão, os olhos abertos, cegos, com uma espécie de fio de
    lama a escorrer do focinho, um cabo para o helicóptero, a secar-se na manga

  • Até já
    e as pás do aparelho a sacudirem o capim, eu para o médico da minha mulher

  • Tudo vai passando com o tempo senhor doutor tem razão
    não há nada que se não perca, é a vida, fica uma ou outra recordação mas cada vez
    mais tênue, a mim por exemplo ficou-me a palavra

  • Amor
    que não oiço há que tempos, de vez em quando o corpo dela mas em silêncio, rápido,
    metade de um copo de água a seguir, as costas voltadas para mim, um

  • Até amanhã
    confuso, de sílabas fundidas umas nas outras, tudo vai passando com o tempo, é bem
    verdade, não me lembro do que tinhas vestido ontem, não me lembro de falarmos,
    lembro-me de teres ido buscar uma garrafa à despensa porque o vinho acabou, tudo
    acaba menos as pedras dos rins, a magreza, os movimentos mais lentos, trazer-te um
    aconchego para as costas, a frase de repente, que cuidava perdida, num intervalo das
    dores

  • Não te viciaste nas pretas?
    os meus pais, no cemitério, a escutarem o vento de outubro, ainda não frio mas tão
    triste, a minha mãe a dizer-me

  • Boa noite
    antes de falecer e eu, espantado com a frase, a responder-lhe

  • Boa noite
    sem querer, se calha passar junto ao jazigo às vezes repito

  • Boa noite
    e a minha mãe calada, há tempos perguntei à minha prima se ao limpar os caixões
    lhe chega um

  • Boa noite

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