você não o velho de agora, você novo, os unimogues a entrarem quimbo dentro, o
gasóleo, os tiros, uma criança a correr, galinhas sem pescoço a pularem, o relento dos
cadáveres mais forte que a mandioca, uma metralhadora a disparar sem descanso no
sentido dos leprosos, o meu filho que não era meu filho, nunca foi meu filho, nunca será
meu filho
- Você matou-os
você trouxe-me para Lisboa, convenceu Sua Excelência - Eu pago eu pago
a casar-se comigo, encontra-se com ela às escondidas de mim, entrega-lhe dinheiro,
convenceu-se que gosta da minha pessoa e não gosta da minha pessoa, não se perdoa
e é tudo ou então sente-se perdoado já, ou então sentir-se-á perdoado quando
consentir que eu pegue na faca, me pendurem pelos pés, escolham a lâmina maior, me
abram o pescoço, coloquem um alguidar por baixo e me escutem os gritos, me vejam
morrer, o psicólogo para mim, no círculo de cadeiras - Cale-se
o psicólogo para mim sem atentar nos outros - Cale-se
o psicólogo na casa da aldeia a assistir à minha morte, não são as pedras da minha
mulher, são as minhas que se tornaram mais leves que a água, a minha mulher de camisa
de rendas - Amor
comigo imóvel ao seu lado na cama, com uma das pernas a escorregar para o chão,
com um dos braços a escorregar para o chão, a minha mulher tão magra, já incapaz de
abraçar-me, a minha filha finalmente interessada em mim - Como é morrer pai explique-me
e depois as orelhas cortadas, as mãos cortadas, e depois as gê três que não se calam,
e depois o vento a levar os restos consigo, e depois os relâmpagos, ainda ao longe, para
o lado do Cambo, e depois os mabecos a farejarem não com os focinhos, com as orelhas,
naquele trote deles em molas, aquele fedor horrível, o porco do chiqueiro já não comia
agora, fitava-nos lá de dentro, desconfiado, a minha filha para nós - Ele sabe
conforme o meu filho sabe, claro, conforme eu sei, e realmente as pedras tão leves
que não posso queixar-me, não me incomodam, não me aleijam, o médico para mim - Com os medicamentos que existem agora a sua esposa não vai ter dores nenhumas
ou seja tudo tranquilo, tudo em paz, a casa em sossego, nós um ao lado do outro,
serenos, a ouvirmos as árvores para além do cemitério, a ouvirmos a serra, uma ocasião,
há muitos anos, vi um javali galopar junto a um ribeiro movendo as agulhas de tricot das
patas, se eu perguntasse hoje à minha mulher - Dá-me licença que a acompanhe?
ela após um silêncio embaraçado, sem olhar para mim - Pode ser
e nós dois a caminharmos lado a lado, cerimoniosos, afastados, saí do quartel no
último unimogue, disparando um derradeiro tiro para um frango que continuava vivo,
empoleirado numa sobra de ramo, com uma das patas suspensa no ar a meio de uma