António Lobo Antunes - Até Que as Pedras se Tornem Mais Leves Que a Água PT (2017)

(Carla ScalaEjcveS) #1

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Quase ao fim da tarde quando um bando de gansos selvagens atravessou a serra de
pescoço esticado na direção do pântano com a fêmea que mandava neles a descrever
uma curva larga aproveitando o vento, a buzinar à frente, por enquanto muito acima
das árvores, e os gansos mais pequenos atrás, atabalhoados, aflitos, que uma raposa
encontrava às vezes, caídos na erva, a piarem de medo, incapazes de fugirem com uma
pata quebrada, tentando defender-se sem conseguirem defender-se, deixei o meu pai
e a minha irmã lado a lado diante da pocilga, de cotovelos a tocarem-se eles que nunca
tocavam um no outro, olhando o porco, eu a pensar espantado se calhar gostam de
estar juntos imagine-se, se calhar gostamos de estar juntos nesta família e os gansos
descendo ao longe, de patas já esticadas, na direção dos caniços, procurando cobrazitas
e rãs, dirigi-me para casa onde a minha mãe de cabeça encostada ao apoio da cadeira
contemplava sem dar por mim a parede em frente com os olhos mais sozinhos que
alguma vez encontrei na vida, distraída de tudo exceto das pedras que lhe bailavam em
torno, vontade de dizer-lhe não são pedras senhora, é o cancro do rim que lhe invadiu
o corpo inteiro, os ossos, o fígado, os pulmões, é a sua morte percebe, não necessita de
nenhuma faca nem que disparem uma arma de guerra fazendo-a girar no quimbo
tropeçando em si mesma, tantos corpos seus para tropeçar antes de cair, o rim chega,
as suas pernas rim, os seus braços rim, a sua barriga rim, a sua cabeça rim, alisei-lhe a
testa com a boca e o beijo rim também, um gosto de doença que me assustou, eu que
dava sei lá o quê para senti-la à noite, acordando sem acordar enquanto me compunha
o lençol, sabê-la ali numa camisa de dormir que cheirava ao meu pai sem sair de um
sonho, com a nespereira, dentro e fora do quarto, a proteger-me dos imprevistos da
manhã, não era a minha voz porque não tinha voz, eram os meus dedos que articulavam



  • Aiué mamá
    para si e para uma mulher sem mãos, de joelhos numa esteira a gritar calada
    enquanto eu procurava impedi-la de se escapar de mim até o meu pai me pegar ao colo
    e se afastar comigo, isso recordo, entregando-me ao condutor de uma camioneta,
    proibindo-o de aproximar a pistola

  • Toma aí conta dele
    à medida que a mulher sem mãos me falava de coisas que eu não entendia, não
    zangada, a pedir, de modo que o meu pai decidiu ficar com o miúdo que eu era, de
    umbigo enorme, tão magro, a olhar para mim sem esperar nada, sem desejar nada, sem
    pensar em nada, o capitão para ele

  • Quer isso para quê?
    e o meu pai para o capitão

  • Talvez daqui a muitos anos se vingue e me mate
    numa espécie de sorriso que não era um sorriso conforme o sorriso da minha mãe,
    na casa da aldeia, não era um sorriso igualmente, era uma pedra mais dura que me
    pesava na palma, o que farei com ela senhora, o que faço consigo, não quero pegar na
    faca amanhã, não quero matá-lo, não quero sentir a minha irmã à espera, não quero
    sentir o meu pai a aceitar, o médico para mim

  • A sua mãe

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