subitamente aflita, tensa, a encolher-se no interior de si mesma, a minha mãe, de
olhos fechados numa
- Se continuar assim vou com vocês à matança do porco amanhã
voz parecida com a sua voz antiga, quando chegamos de África obrigava-me a comer
a toda a hora - Ainda está magro o gaiato
o meu pai para a minha irmã enquanto um cão ladrava numa ruela qualquer - Fazias-me essa desfeita?
com qualquer coisa na voz que eu não decifrava, não tristeza, não desilusão, um
estado de alma diferente, o que sinto por ele, o que sinto por ela, o que sinto por vocês
todos meu Deus, por vezes, à noite, quando estamos deitados, isto já de luz apagada,
apetece-me, não é bem apetecer, passa-me pela ideia, isto é oiço os unimogues a
aproximarem-se, oiço as pessoas nos quimbos, um cabíri que se senta nas patas
traseiras e principia a uivar, não propriamente uivar, latidos estranhos, uma silhueta a
preparar um canhangulo, passos que estacam, caminham, estacam de novo, o que
sentirá a terra quando a pisam, o que sentirei eu amanhã - Os tugas
sombras, claridades, motores, a minha mãe para o meu pai, a coçar-me a nuca,
satisfeita - Já aumentou dois quilos e diminuiu a barriga
ela nova, magra, com a bata manchada de trabalhar em casa, o meu pai a descalçar
um dos pés para coçar a canela - Ontem sonhei que um dos nossos soldados
e a calar-se a seguir massajando os dedos, sempre se queixou que as botas de lona
lhe arruinaram a vida, os unimogues a desfazerem a fila e a afastarem-se uns dos outros,
percebia-se o esforço das bielas nas covas, uma voz de vez em quando, o relento do
gasóleo queimado, uma culatra a estalar, uma roda lutando com uma pedra, mais
canhangulos, nenhum pavio nos quimbos, um cabíri que ladrava em silêncio, o que fará
a minha irmã depois da morte do porco, nunca a vi acompanhada, nunca lhe conheci
nenhum homem, um vizinho do meu pai, viúvo, deixava-lhe bilhetinhos na caixa do
correio que ela enfiava, rasgados, na dele, não lhe respondia aos cumprimentos,
cruzava-o sem o ver, a minha mãe calada mas percebia-se que com pena, notava-se-lhe
na curva da boca, o meu pai acho que nunca soube, lembro-me da mulher do viúvo, com
um defeito numa perna, a descer de banda as escadas do prédio com uma bengala de
um lado e a mão apoiada à parede do outro, sem pedir ajuda, sem se queixar nunca, a
minha mãe para ninguém, ou seja para a minha irmã - O marido apoiou-a sempre não há muitos assim
a mulher do viúvo a lutar com os degraus ajudada pela boca aberta e as rugas da
testa, se temos um problema em qualquer parte do corpo o resto de nós solidário, à
noite, quando o escuro aperfeiçoa os sons, a perna doente muito mais ruidosa que a
outra, Dona Belinha, a atravessar o corredor tentando equilibrar mais ou menos as suas
duas metades, a voz do marido, no quarto - Estás a conseguir?