António Lobo Antunes - Até Que as Pedras se Tornem Mais Leves Que a Água PT (2017)

(Carla ScalaEjcveS) #1

e a resposta uma dificuldade torta sem palavra nenhuma, ou foi de nascença ou foi
um acidente derivado às múltiplas, o porco, traições da rua, um automóvel desatento,
passeios mal calcetados, coisas que escorregam, o porco, sem mais comida na pocilga,
a fungar para o meu pai falando-lhe com os olhinhos minúsculos, o que vem a tropa aqui
fazer ao quimbo, um ou outro homem saía de vez em quando para espreitar a mata
depois dos pavios apagados, fios de tropeçar nos trilhos, se os soldados os pisam uma
granada explode à altura dos joelhos, o quimbo oculto no capim, nas árvores, numa
ponta de chana que a tropa esquecia, a minha irmã para o meu pai, debruçada sobre a
pocilga



  • Tem a certeza que é este porco que vão matar amanhã?
    a querer dizer-lhe sem querer dizer-lhe, pensando apenas e sem exprimir nada,
    lembro-me de um melro por ali num canteiro, de um primo do meu pai a sachar mais ao
    longe, da estrada para a vila com uma santinha num nicho perto de um cruzamento, do
    major de operações a rondar um cafeco e do capitão indignado

  • A miúda tem sete ou oito anos o meu major não se cura
    enquanto a boquilha do major fumava, fumava, a minha mãe para mim quando fui a
    casa dar-lhe o remédio

  • Há qualquer coisa que não está bem não há?
    imóvel, sem abrir os olhos mas notava-se que inquieta, por muito leves que as pedras
    sejam uma vibração em nós a atormentar-nos, escutava-se a fêmea a convocar os outros
    gansos no pântano, escutavam-se as asas rente à água e às ervas, um cão numa quinta
    distante, um dos últimos pássaros, atolado, a tentar salvar-se da lama, a seda de um
    gato no telhado da casa da aldeia, eu para a minha mãe

  • Não se preocupe senhora
    que é apenas a tropa que nos vem matar, é apenas a guerra, são apenas os brancos,
    é apenas o meu pai a defender-se das facas

  • Mata mata
    o psicólogo do hospital no seu círculo de cadeiras

  • Tudo isso acabou há que tempos senhores
    e se acabou há que tempos por que razão continua, o que fazemos nós lá ainda, como
    será África agora, restos de camioneta, restos de unimogues, aleijados nos quimbos,
    aldeias de leprosos cuja sineta ninguém toca, toquei eu numa sineta imaginária para que
    a minha mãe uma colher de sopa, duas colheres de sopa e a mão a empurrar o prato

  • Não insistas filho
    um dia destes pediu-me que lhe trouxesse a camisa de rendas que acabei por
    encontrar num fundo de gaveta e permaneceu a olhá-la que tempos sem se atrever a
    tocar, a camisa e um anelzito numa caixinha de cartão com amores perfeitos pintados,
    uma pedrinha num aro de prata porque o oiro caro ou se calhar nem prata, pegava-se
    na caixa e o passado chocalhava lá dentro, uma prima idosa sempre com ela e o meu
    pai, sentado em frente deles de olho feroz, se por acaso um sorriso demasiado aberto a
    prima logo

  • Respeito
    a minha irmã para o meu pai

  • Repare bem no porco senhor

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