António Lobo Antunes - Até Que as Pedras se Tornem Mais Leves Que a Água PT (2017)

(Carla ScalaEjcveS) #1

  • Euá
    o feiticeiro, de braços em cruz, a sangrar de um dos olhos, o meu pai e a minha mãe
    agora no degrau da horta com a noite de Angola em torno, estrelas desconhecidas
    demasiado alto, porque é que os pretos tão pobres, porque é que os matam a todos, o
    meu pai a puxar-me para o unimogue

  • Vamos
    e eu a deixar a minha mãe, sem mãos, no quarto e a sentar-me no degrau com a
    minha irmã e o meu pai, o cheiro de petróleo dos pelos queimados do porco, os dedos
    que procuravam a veia abaixo da orelha, o meu pai a coçar a nuca

  • Amanhã
    a minha irmã para ele

  • Como já não tem a espingarda com que faca quer que o matem?
    o psicólogo do círculo de cadeiras do hospital para nós

  • Calem-se
    vestido de major, pequeno, ruivo, calvo, com uma boquilha nos dentes enquanto os
    gansos selvagens se juntavam num penedo da serra com a fêmea a repetir-lhes

  • Amor
    e as pedras em torno dela vogando ao acaso, em pequeno o meu pai, não o que ficou
    em Angola, o que voltou comigo, apontava-me os pássaros

  • Um dia a gente voa
    a minha mãe tossiu no quarto e o meu pai a preparar-lhe um caldo

  • Comes cinco ou seis colheres não exijo mais que isso
    estendendo-lhe um pulso que tremia, de que tem medo você, o que receia que
    aconteça, tudo tão simples, tão claro, acabou-se África, acabou-se Portugal, sobramos
    nós umas horas, a partir de amanhã de manhã nenhuma mulher aqui, Sua Excelência e
    a minha irmã de regresso a Lisboa, a casa da aldeia, dentro de um ano, já nem telhado
    sequer, um ou dois velhos, um ou dois cães, não a gente nas travessas e é tudo, a prima
    do meu pai a cuidar do jazigo com jarrinhas de malmequeres nas duas janelas ou talvez
    venha para Lisboa também e jazigo nenhum, uns restos de calcário, umas cruzes,
    ciprestes oxidados, a estrada ao fundo onde não passa ninguém, uma carroça talvez,
    uma bicicleta a penar na subida, uma rapariga com lenha à cabeça, um burro preso a
    um espigão e pronto, tudo vazio, acabou-se, o porco a acabar de pingar nos alguidares
    sem que ninguém lhe segure as vísceras, o corpo dele a baloiçar no gancho e então o
    mundo parado, acabou-se, o psicólogo do círculo de cadeiras no hospital

  • Acabou-se
    as terrinas de alumínio do almoço dos doentes

  • Acabou-se
    a caixa dos talheres

  • Acabou-se
    voltam de África assim, acabou-se

  • Sinto nos vossos semblantes a alegria de irem servir à Pátria
    e acabou-se, que Pátria, uma guerra não foi, os pretos que se revoltaram não foi, a
    independência não foi, uma coisa de que ninguém se recorda não foi, a minha avó a
    estender um papelinho ao meu pai

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