António Lobo Antunes - Até Que as Pedras se Tornem Mais Leves Que a Água PT (2017)

(Carla ScalaEjcveS) #1

  • Amor
    e a calar-se logo com medo que eu escutasse, minutos depois entrou-me no quarto
    sem acender a luz e embora não a distinguisse sentia-lhe o braço que mesmo não me
    tocando pesava, um cheiro diferente nela, a palma no meu ombro, um segredo no
    corredor

  • Graças a Deus não a acordamos
    e as molas do colchão ao deitar-se de novo, basta injetar-me para que tudo volte ou
    sinta o meu pai a remexer no armário

  • Que é da minha gê três?
    e a seguir um silêncio comprido, e a seguir ele numa voz alterada

  • As coisas parvas que me vêm à cabeça já viste?
    e as molas da cama antes de adormecer, e gaivotas, e pessoas, e quando eles já a
    dormirem uma voz naquilo que se assemelhava a um microfone

  • Sinto nos vossos semblantes a alegria de irem servir à Pátria
    e a seguir nada a não ser os barulhos da rua, uma camioneta, uma ambulância,
    passos, o vento nas tipuanas mas baixinho, em segredo, a minha mãe a beber água na
    cozinha ciciando

  • Meu Deus
    o pianista do terceiro que chegava tarde por tocar no Casino, a pingar teclas dos
    dedos, o porco amanhã de manhã e voltar para Lisboa que me faz falta a injeção, doem-
    me os braços, doem-me os intestinos, sinto a falta da paz que aquilo me oferece, paro
    de ter medo que os meus pais morram e me deixem sem defesa neste cubículo alugado
    que não sabem onde fica e apesar de não saberem me encontravam logo, eu ao colo do
    meu pai sem o relento da minha mãe no seu pescoço, ouvi-lo

  • A minha menina
    que escutei em tão poucos momentos e sentir uma espécie de, quer dizer não sentir
    nada, um aliviozito apenas, a mão dele nas minhas costas, o contacto da barba, que
    cresceu durante a noite, na testa, palavra de honra que há momentos em que se eu
    conseguisse dizer

  • Amor
    dizia e aqui para nós invejo-a mãe, você que me fazia sofrer ao aparar-me as unhas
    em criança, sobretudo os cantinhos e eu apavorada de ficar sem dedos, a sua maneira
    de me pentear que me arrepelava toda e se me queixava a ordem logo

  • Deixa-te de mariquices menina
    comigo à procura de um espelho para me ver careca, os sapatos sempre demasiado
    grandes, com algodão na biqueira

  • Porque estás a crescer
    infelizmente cresces depressa demais, não tarda tens mais duas cabeças que eu no
    mínimo, obrigando-me a empoleirar-me num banco, desses sempre a abanarem, para
    te chegar ao cocuruto, isto no caso de não partir uma

  • Sinto nos vossos semblantes a alegria
    de não partir uma perna antes disso e estou para ver quem cozinha e toma conta
    desta casa depois, sapatos gigantescos

  • Não somos ricos sabias?

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