António Lobo Antunes - Até Que as Pedras se Tornem Mais Leves Que a Água PT (2017)

(Carla ScalaEjcveS) #1

  • Ai caramba caramba
    lançando tentáculos para as minhas coxas, o meu ventre, o meu peito, o meu corpo
    inteiro, sobretudo os dedos dos pés que nunca pensei capazes de se dobrarem tanto
    para cima, enquanto os meus olhos navegavam, cerrados, pelo quarto inteiro como
    essas sementinhas sem peso, peludas, que entram pela janela, poisam aqui, poisam ali,
    vão-se embora, regressam, fica uma a tremer na cortina enquanto outra nas tipuanas
    me ensurdecia

  • Ai caramba caramba
    o vento

  • Caramba
    a diminuir e a crescer, o meu sangue vibrava no pescoço, nas têmporas, na barriga, o
    meu coração enorme, muito maior do que eu, muito mais forte do que eu e eu com
    medo

  • Vai rebentar vai rebentar
    e deixando de ter medo, eu ao mesmo tempo comigo e longe de mim e comigo de
    novo, o microfone do general anunciou numa energia elétrica

  • A alegria de irem servir a Pátria
    tão intenso nos meus ouvidos, caramba, enquanto o

  • Dá-me licença que a acompanhe?
    ora existia ora não existia, quer dizer existia o que se me afigurava uma coxa, um
    pedaço de umbigo instantâneo, o rosto que se assemelhava e não se assemelhava a ele,
    uma bochecha contra a minha bochecha, o meu braço nas suas costas

  • Amor
    sobretudo o meu braço nas suas costas

  • Amor
    a beliscá-lo, a torcê-lo, a arrancar-lhe bocados, a devolver-lhos enquanto uma voz
    aflita pedia

  • Manda mosca manda mosca
    e um som de motor cada vez mais próximo a encher-me os ouvidos, os meus ouvidos
    imensos, nunca conheci ouvidos tão grandes nem um

  • Amor
    tão forte, tão denso, tão rouco, tão meu e não meu, quem o dizia por mim, a minha
    avó a coçar-me a cabeça

  • O que tu cresceste menina
    e cresci, maior que ela claro, maior que o pomar, maior que a casa, o

  • Dá-me licença que a acompanhe?
    tão sem importância, tão pequeno, tão leve, a minha boca já não

  • Amor
    calada, o meu corpo a reduzir-se devagarinho, ou seja o meu corpo verdadeiro a
    surgir deste corpo gigantesco que se dissolvia lentamente, eu a dar-me conta da cama,
    da almofada a descer para o chão, dos lençóis amarrotados, de um cobertor algures, a
    dar-me conta do quarto e uma voz dentro de mim, a voz de não sei quem dentro de mim
    que principiava a pertencer-me, me pertencia, era minha, quase a voz do costume e
    depois a voz do costume com que vivia há anos

Free download pdf