a existir e a não existir ao mesmo tempo, o que fizeste do meu corpo se tenho sangue
lá em baixo, o que fizeste às minhas coxas que doem sem doer, o que aconteceu à gente,
ao tronco que demora a pertencer-me de novo, tenho frações que conheço, frações que
não desconheço, frações que havia esquecido, pés de novo pequenos, redondos, o meu
peito tão duro, os joelhos menos agudos, uma paz longa em mim, uma espécie de sono,
não me toques agora, não me beijes, deixa-me, os soldados para o
- Dá-me licença que a acompanhe?
- A gente vê-se por aí meu alferes
até aqueles que lá ficaram a gente há de ver por aí, o Cenoura, o Seca Adegas, o
Bichezas, os outros, o apontador de metralhadora - Cá vou eu para Trás os Montes meu alferes
na voz tranquila de sempre e as sobrancelhas gigantescas, o médico, divertido, a
interromper a receita - Seca Adegas?
e de súbito nele tanta pena de mim - A gente acaba por se afeiçoar aos doentes sabia?
de modo que aproveite para se afeiçoar depressa, senhor doutor, que já não tem
muito tempo, mais umas semanas, dois meses, três meses e deixo de responder-lhe
como deixo de ouvi-lo, fico para aí na cama a olhar o teto sem o enxergar, sem
respiração, fico no jazigo da aldeia, contra a minha vontade, com a serra toda por cima,
oiço os ginetos no inverno, oiço a chuva e as árvores ou então não oiço nada, não sou,
quando levantaram a minha avó da terra umas cartilagens soltas e uns fiapos de tecido
que se desfaziam nos dedos, duas tábuas quebradas, que é feito da sua autoridade, que
é feito das suas zangas, o médico a pegar-me na mão - O que para aí vai meu Deus
com medo não por mim, por ele, para nenhum de nós não falta muito tempo, é assim,
há mais defuntos debaixo da gente do que grãos de areia na praia e quanto à alma o
que é isso, nem as pedras mais leves que a água continuarão aqui, desfazem-se com o
resto do corpo, o meu filho para mim - Vou levá-la à adega senhora
com a ajuda dele de um lado, uma bengala do outro e olhando para baixo a fim de
evitar tropeços ainda consigo passar a casa, a horta, ainda sorrio às pessoas, ainda
inclino a cabeça, o - Dá-me licença que a acompanhe?
para a minha filha - Não está com melhor aspecto a tua mãe?
a minha filha um soslaio que significava tudo e um aceno que não significava nada, o
meu filho junto às facas, sem se voltar para mim - Claro que está
com a voz a fazer eco no cimento e os resmungos do porco aqui perto, viajou de
furgoneta, estão a amarrar-lhe as cordas, vão principiar a trazê-lo, há momentos em que
penso que eu transportada dessa forma ao hospital, como um fardo, o - Dá-me licença que a acompanhe?