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Ao fim de meia dúzia de meses já não lia as cartas que me escreviam de Portugal,
para quê, notícias de um mundo que deixara de existir para mim, a saúde deles e o que
me interessa a saúde de estranhos, o tempo que faz num sítio que já nem sei como é, o
casamento de um primo eu que deixei de ter parentes, a minha mulher se calhar
nenhum problema no rim que é um órgão que eles têm, não eu, visto que as análises
quase normais exceto uma qualquer sem importância que de acordo com um
enfermeiro conhecido do meu sogro basta cortar no açúcar e tu o que fazes em África
rapaz, os jornais garantem que tudo pacífico em Angola, um problemazito aqui, outro
ali mas conversa-se com os chefes da pretalhada e a vida compõe-se, já agora porque é
que não nos respondes, lembra-te que tens uma família que apesar de tudo se preocupa
contigo, não desligues da gente e de fato eu desligado da gente, ora no degrau da messe
a olhar o vazio ora na mata com os soldados
- O flanco esquerdo mais dentro da picada
o que me interessava o país que só existia sob a forma de beijinhos antes dos nomes,
a minha mãe acrescentava as saudades do meu pai que aprovava com a cabeça - Mandei saudades tuas
a pensar noutra coisa, na empregada da farmácia que o tratava por - Olá simpático
ou na maçada da hérnia que lhe desbotava a vida, a minha mãe de sobrancelhas
desconfiadas - Olá simpático?
e o meu pai a desculpá-la - É uma rapariga educada
por acaso com um peito mais educado ainda, prestes a explodir na bata, lembrava-
me da cicatriz na bochecha que diminuía o mérito do peito, se calhar era caro demais
para o ordenado dela tirar a cicatriz, o meu pai a calcular preços e a minha mãe que para
certos e demasiados assuntos tinha antenas - Estás a pensar em pagar-lha?
deixando a empregada da farmácia à mercê de outros generosos mais livres, a cicatriz
acabou por sumir-se e foi o flanco esquerdo que pagou as favas - Eu disse mais dentro da picada porra
porque nunca se sabe o que os turras preparam, quando menos se espera uma
granada, fogo, o que vale é que as espingardas deles mais antigas, quase canhangulos
as pobres, volta não volta encravam, deitava as cartas de Portugal na lata de
desperdícios da messe, isto é a cicatriz da empregada e o casamento de um primo,
parece que a noiva epilética coitada, Portugal uns envelopes que não me interessavam
em nada, o rim da minha mulher estupendo, para quê pensar nisso, inquietamo-nos sem
motivo, afligimo-nos sem razão, bem me basta o flanco esquerdo e os canhões sem
recuo que eles afirmam já ter, o rádio diz que fizeram cair uma DO com um míssil, às
vezes na cama, no barraco da messe, às escuras, sentia-me de repente pequeno na casa
dos meus pais e surgia-me, quer dizer não acontecia nada mas sentia uma espécie de
obstáculo na garganta, uma dificuldade em respirar como antes das lágrimas mas sem