lágrima nenhuma, claro, tudo isto por dentro, até que julgava escutar os passos da
minha mãe e então crescia de repente e mandava-a embora
- Deixe-me dormir em paz
zangado com ela, zangado com o mundo, zangado comigo, apetecia-me que me
trouxessem dúzias de cartas de Portugal para as rasgar todas sem as abrir, rasgar o
assalto à ourivesaria, o divórcio do vizinho, as análises mesmo quase normais da minha
mulher, tudo aquilo que já não existe, tudo aquilo que perdi, o arame farpado que coisa,
África que coisa, a guerra que coisa, a respiração das árvores que coisa, o cheiro denso
da terra que coisa, calçava as botas e saía até à parada em pijama, vendo o contorno das
berliês, dos unimogues, dos armazéns tortos, sentindo as luzes que se moviam no capim,
sentindo o bafo vagaroso do calor, lembrando-me da minha mãe à entrada do quarto - Estás a dormir tu?
e eu calado, claro, quando muito - Não há pressa não há pressa
a tatear a terra com o vértice das botas antes de pisá-la e dentro de mim, furioso
comigo - Mãe
que me escrevia acerca das avarias do esquentador, da morte do cão da vizinha da
cave direita, do preço da carne sempre a subir - Ao menos não tens de te preocupar com os problemas
e eu feliz de não ter que me preocupar com os problemas, só tenho que comandar
um pelotão, aguentar até março do ano que vem e depois sou pessoa outra vez, só tenho
que cuidar de trinta homens que talvez acreditem em mim eu que não acredito em mim,
talvez acreditasse se o meu pai comigo ou o meu avô - Filho
ainda o oiço - Filho
mesmo hoje, no dia da matança do porco, o oiço - Filho
magrinho, com uma barbicha rala, em pequeno queria ter um cachorro mas os meus
pais não me deixaram, o que eu os odiei por causa disso, se tivesse uma pistola de
fulminantes era capaz de matá-los, como seriam as noites sozinho e sem saber ligar o
fogão, além disso bastavam os passos da minha mãe no corredor, à noite, comigo já
deitado, para afugentar os ladrões, com ela presente quem se atrevia a roubar-me
metendo-me num saco, ainda hoje há momentos em que sonho com isso, quando a
minha avó morreu vi o meu pai chorar e tive tanto medo que ele mais novo do que eu
que não chorei nem uma lágrima, não me levaram ao funeral, fiquei em casa à espera a
brincar com um comboio, ao voltarem deram com o tapete torto e ninguém disse nada,
sentaram-se nas cadeiras quietos, sem falarem, enquanto eu os atropelava, um a um, a
todos, uma das picas bateu em qualquer coisa e o soldado de minas e armadilhas, de
cócoras, foi afastando a terra com a mão cautelosa até levantar uma caixita de madeira
que explodimos a tiro numa fumarada escura, abrigados em dobras de terra, uma caixita
de madeira cheia de pedaços de metal, pregos, parafusos, não houve nenhuma outra a
rebentar por simpatia, apenas o mato a recompor-se devagar, o porco deste ano igual