António Lobo Antunes - Até Que as Pedras se Tornem Mais Leves Que a Água PT (2017)

(Carla ScalaEjcveS) #1

depois de sentada num tripé despida até à cintura, a apertar-me contra o peito
ordenando



  • Morde
    e eu desaparecido nela, tão assustado, cheirava a carne e a pó de oficina, pregas
    moles imensas, nenhum osso a aleijar-me mas era difícil existir apertado entre duas
    montanhas, cada qual com uma espécie de moeda, dura, escura, no vértice, ela num
    suspiro, a esmagar-me as cartilagens dos ombros

  • Chupa menino para cresceres mais depressa
    em que às vezes uma gota muito antiga assomava, a viúva do ferreiro, de nuca
    lançada contra a parede atrás dela

  • Diz que te sabe bem filhinho diz
    e tanto quanto me recordo não sabia bem nem mal, guardava na boca para cuspir
    depois, em chegando a casa lavava a língua na torneira, há uns anos perguntei à minha
    prima, a que nos tratava no jazigo

  • A viúva do ferreiro?
    e ela a mudar a água das flores nas jarrinhas de vidro

  • Morreu há séculos coitada atirou-se a um poço
    e de cada vez que se pescava um afogado surgia cheio de limos, de cabeça torta nos
    ombros, os braços azuis e as feições inchadíssimas, roxas, assim de repente vem-me à
    ideia o sacristão, ainda com a opa em farrapos, e um rapaz muito tímido, sempre a
    cumprimentar

  • Desculpe
    em lugar de

  • Bom dia
    que passava os invernos quieto a olhar a chuva do interior da janela, tiram-se as gotas
    das vidraças e a cara dele logo atrás, o capitão mandou colocar outra cerca de arame
    farpado à roda do quimbo que passamos a patrulhar a horas desencontradas mas não
    descobrimos nada a não ser, de longe em longe, uns javalis e uns mabecos a
    perseguirem-nos, aqueles orelhas enormes deles, aquele galope, já quase todas as
    pessoas estavam sentadas na cave para assistir à matança, a minha mulher, a minha
    filha, Sua Excelência, a prima do jazigo, os dois homens que trouxeram o animal,
    obrigando-o a entrar na furgoneta picando-o com uma vara, a cada golpe com o bico
    metálico um saltito roncando, não podia morder ninguém porque o focinho amarrado,
    não podia jogar-nos as patas, não podia atacar-nos, odiava-nos apenas, um helicóptero
    passou por nós dado que um ataque à companhia depois da nossa, ouvimos no rádio os
    pedidos de mosca entre dúzias de silvos, de interferências, de outros rádios mais longe,
    sons que pareciam de morteiro noventa, rajadas, uma voz distorcida

  • Depressa
    enquanto o porco baloiçava no gancho a curvar-se, a pular, odiando-nos como o turra
    que apanhamos, ferido na virilha, após uma emboscada com sorte, tentando arrastar-
    se para o capim, a minha mulher

  • Estás a sonhar outra vez
    e tens razão, estou a sonhar outra vez, é evidente que nada disto se passou, inventei-
    o, como não se passou a polícia política a matar prisioneiros, como não se passou eles a

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