António Lobo Antunes - Até Que as Pedras se Tornem Mais Leves Que a Água PT (2017)

(Carla ScalaEjcveS) #1

  • Isto do rim afinal sem importância alguma
    e uma borboleta de lata, barata, grande, a desprender-se da lapela e a voar pela cave,
    talvez poise num dos barrotes, talvez saia a voar pela janela, talvez desapareça na serra,
    talvez o meu pai, esquecido da caçadeira e das perdizes

  • Viste-a?
    o meu pai

  • Portugal uno e indivisível do Minho a Timor
    mas o meu pai a apontar a caçadeira para uma crista de terra a dez ou vinte metros

  • As perdizes
    com a cadela de boca aberta, toda inclinada para diante, à espera, de focinho a
    crescer e a retrair-se, o meu pai para mim

  • Nem respires rapaz
    e descanse que não respiro senhor, estou à procura da artéria no pescoço do porco,
    a verificar a cartilagem, a encontrá-la por fim escapando da mandíbula que procurava
    quebrar-me, a minha filha na porta das traseiras coçando-se sempre, limpando-se no
    lenço, sem coragem de entrar, por que motivo não tens coragem de entrar se está tudo
    bem, tudo bem, só talvez o teu irmão a mover-se de maneira diferente, atento ao
    mesmo tempo ao bicho e a mim, quer dizer mais atento a mim do que ao bicho, eu a
    procurar a artéria do pescoço do porco e pareceu-me que ele a procurar a minha mas
    devo estar enganado, posso estar enganado, estou de certeza enganado, por que carga
    de água a procurar a minha, por causa de umas orelhas, por causa de umas mãos, por
    causa de um preto no chão, que preto vale alguma coisa aliás, Portugal uno e indivisível
    do Minho a Timor, que querem eles agora, o meu filho ao meu lado não a observar o
    bicho, a observar-me a mim, o psicólogo no círculo de cadeiras do hospital

  • Não está a exagerar?
    o modo como o meu filho me olhava igual ao modo como eu olhava o bicho, talvez
    se recorde, não sei, dos quimbos que ardiam, talvez se recorde das pessoas, das
    galinhas, das cabras, talvez se recorde desse tempo, nunca falamos sobre África, nunca
    se referiu a nada, não sei o que lembrava, como lembrava, o que sentia, o que recordo
    de mim em criança para além do desejo de um cão são objetos enormes, o sofá, a mesa,
    janelas a que não chegava, um relógio na cômoda a marcar horas sem fim comigo a
    pensar

  • Que grande é o tempo
    ou seja ponteiros gigantescos girando devagaríssimo sobre uma roda de números e
    eram os ponteiros e os números que mandavam em nós, a minha mãe olhava para eles
    e escandalizava-se comigo

  • Nove e meia e não estás na cama
    eram os ponteiros que mandavam nos dias, definiam a altura das refeições

  • Oito e meia e ainda não jantamos
    traziam o meu pai para casa às sete horas, mandavam-no sair às seis e meia da
    manhã, a minha mãe alarmada

  • Já passa das seis e trinta e um e continuas aqui até parece que queres perder o
    emprego
    a apontar-lhe os números que lhe regulavam a vida, o meu pai com olheiras

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