António Lobo Antunes - Até Que as Pedras se Tornem Mais Leves Que a Água PT (2017)

(Carla ScalaEjcveS) #1

  • Hoje a partir das quatro não tornei a dormir
    comigo a fitar o quatro, tão poderoso que até impedia de dormir com consideração,
    com respeito, como é que os números faziam é que não entendia, eu para o meu filho,
    baixinho

  • Diz-te alguma coisa África?
    mas tudo ecoava no cimento da cave, mesmo falando em segredo as palavras
    grandes, misturadas com o eco dos pássaros, os estrondos de uma bacia que arrastavam
    para junto de mim ou das pernas de uma cadeira que encostavam à parede, na janela
    os pombos do Cardal Florido às voltas, ora brancos ora escuros conforme seguiam na
    direção do sol ou se afastavam dele, de repente poisavam todos na praça, quietos, de
    repente erguiam-se à uma, o irmão do meu pai morava sozinho no Cardal Florido desde
    que a mulher se foi embora com um ourives ambulantes, o meu tio sempre de faca no
    cinto

  • Hei de encontrá-los um dia
    o meu pai mandava-lhe um pedaço de porco que ele não, ouvíamos na rádio um
    outro pelotão a pedir instruções ao Comando, agradecia, continuava sentado no degrau
    da porta a olhar para as mãos

  • Hei de encontrá-los um dia é uma questão de tempo
    mais estreito que o meu pai, mais pequeno, a enrolar uma mortalha numa lentidão
    interminável

  • É um problema de tempo
    a mim dizia-me sempre a mesma frase, sem um olhar sequer, todo concentrado no
    tabaco

  • Não caias na asneira de crescer garoto
    o meu pai espiolhava a despensa no receio que lhe rareasse a comida, espiolhava o
    armário

  • Tens cobertores para o inverno tu:
    mandava a minha mãe esfregar-lhe a casa, coser botões que faltavam, dar uma vista
    de olhos à lata do açúcar onde ele guar, chuva civil não molha, dava o dinheiro, chuva
    civil não molha militar, e juntar uma nota ou duas às moedas que encontrava no fundo
    e o meu tio sempre sentado às voltas com o tabaco, uma única ocasião, quando já nos
    vínhamos embora, levantou-se de repente, abraçou o meu pai, disse

  • Mano
    tornou a sentar-se e a apontar um fósforo à mortalha, durante o caminho de regresso
    o meu pai de pingo no nariz que secava no lenço trabalhoso de puxar da algibeira, sem
    responder fosse o que fosse às minhas perguntas, eu disse um pingo no nariz, não disse
    um pingo nos olhos, os olhos secos, claro, só a garganta, embora não estivesse a comer
    nada, a engolir, engolir, pouco antes de morrer, já na cama, tocou-me na mão, disse

  • Chuva civil não molha militar
    disse

  • Rapaz
    e engoliu de novo, nada de queixas nem de lamentos, engoliu apenas, se por acaso
    lhe entregasse uma mortalha aposto que fumava interessadíssimo nos pombos, está
    acolá no cemitério, espero que com um lenço porque o nariz às vezes, há sempre

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