sem fim, não só os cheiros da casa e da minha família, o da cerejeira do quintal, o da
hortazinha, aquele, menos agradável, dos compartimentos fechados a ganharem bolor
todo o ano sem falar das vespas e besoiros mumificados no soalho que se por acaso
caminhamos descalços se nos esborracham, numa horrível vingança amarela e pegajosa,
contra as plantas dos pés, curioso que só de pensar na casa e nos meus pais me vem
uma saudade tipo afrontamento para não mencionar o pavor de que a minha mãe etc e
tal mas não vamos pensar nisso agora, talvez o coração do Céu amoleça e seja como for
raios partam as pedras que desejam matá-la, a vão matar, a matam, não quero mais
cotos pedindo nem orelhas em garrafas nem
- Queima queima
nem - Mata
nem penas de galinha daqui para ali consoante o sopro das chamas, nem cabíris
degolados, sem patas, nem a minha mãe - Pois claro
a sorrir, não seja boa, não tenha pena de nós, odeie a gente que vamos ficar vivos,
insulte-nos, expulse-nos - Desapareçam-me da vista
chore, tente rasgar os lençóis, recuse a comida, o motor do automóvel deixou de
funcionar tentando chamar a si, exausto, o fundo de gasolina que tinha, eu a segurar-
lhe as mãos - Mãe
ou uma espécie de - Mãe
que se devorava a si mesmo, não, eu - Só me faltava esta
quando me faltavam muito mais coisas, assobiar com dois dedos na boca por
exemplo, jogar amendoins ao alto e apanhá-los com a língua, meter argolas de fumo
umas dentro das outras, o carro foi abrandando, abrandando, escutei algures à
esquerda uma vaca a mugir, os plátanos segredavam como os eucaliptos de Angola
antes de um ataque, a minha mãe verificando, por amor à elegância, se a dentadura
postiça aguentava nas gengivas e as bochechas não côncavas, direitas, o automóvel, a
baloiçar o dobro de uma gôndola, com Sua Excelência cada vez mais nervosa - Se fosses branco talvez me salvasses
até se deter na berma, perto do cadáver de um gato e Sua Excelência num sussurro
vencido, apavorada com presenças tão leves quanto o murmúrio das folhas, os insetos
que entravam pelas janelas em círculos tortos, a ameaça das trevas desde que desliguei
as luzes porque a bateria não estava grande espingarda - Meu Deus
e para além disso o automóvel não novo, claro, que o dinheiro não dá para tudo,
querias roupas, querias sapatos, querias salão de beleza, querias luxos de modo que,
com o meu ordenado, para cobrir-te os ombros tinha que destapar-te os pés ou vice-
versa que o dinheiro não é elástico e roubar velhotas no metrô por enquanto, vá lá,
ainda não se tornou o meu gênero, um pássaro grande