António Lobo Antunes - Até Que as Pedras se Tornem Mais Leves Que a Água PT (2017)

(Carla ScalaEjcveS) #1

chão mas uma placa pomposa a anunciar implantologia, dois talhos modestos, quase
seguidos, com cadáveres pelados em ganchos



  • Quando será que as pessoas deste pais irão perceber que tomamos conta delas?
    uma florista modesta e melancólica e ao ver rosas vermelhas, não muito frescas, na
    montra o

  • Amor
    ressuscitou, um

  • Amor
    com unhas que me aleijavam por dentro sem mencionar um peso de remorso que
    me incomodava a alma, a rua o cabo dos trabalhos porque os números das portas em
    vez de um, três cinco etc tinham um á, um bê, um cê depois do número e portanto
    comecei a pensar que infinita para além de pouco iluminada, prédios alguns deles
    entaipados, falhas nos azulejos, algerozes torcidos e restos de cartazes já com vários
    invernos a acenarem farrapos, a porta do oitenta e nove aberta, com uma mãozinha de
    ferro segurando uma bola em lugar de campainha e o interruptor da luz avariado, uma
    escada de degraus altíssimos e corrimão metálico que tremia mais do que eu, dissolvia-
    se nas trevas a que acrescentei uma queixa de

  • Foda-se
    somada ao

  • Amor
    aumentando a culpabilidade e dificultando a subida, os patamares estreitos, um
    deles atravancado por um carrinho de bebé de que me custou desembaraçar-me dado
    que parecia ter ganchos que me agarravam, prendiam, exigiam que permanecesse com
    eles, me largavam por fim contra vontade, num resmungo de molas, comecei a distinguir
    uma claraboia no

  • Quando será que as pessoas deste país senhor alferes
    teto, dessas com vidros quebrados, brancas de pó e lixo numa claridade difusa e
    silhuetas de pombos para cá e para lá, ao contrário das rolas dormem mal, os pombos,
    sempre com medo que os turras, sempre com medo que um gato ou um mocho ou assim
    disparem sobre eles, lhes segurem nas patas, lhes desfaçam a espinha, os comam, a
    minha mulher no seu lugar do sofá, com a almofada menos cavada, a bordar diante da
    televisão sem som que não via, saber que havia silhuetas a mexerem-se ali perto,
    mesmo que fosse num écran, consolava-a, e o fato de eu conhecer toda a tralha e todas
    as emoções que habitavam aquela casa culpabilizou-me mais ainda, pelas minhas contas
    estava no terceiro andar conforme a colega escreveu à pressa no bloco, isto tanto
    quanto o meu cérebro sem sangue visto que todo o sangue nas pernas derivado ao
    esforço de subir e por conseguinte desprovido de glóbulos vermelhos que me
    oxigenassem entendia, eu idiota, eu confuso, no terceiro andar nenhum carrinho de
    bebé, apenas um saco de plástico de lixo com um nó em cima de onde um gargalo
    espreitava cheirando a cascas de laranja e duas portas cada qual com o seu capacho, o
    da esquerda um Bem-vindo meio apagado, o da direita uma caravela apagadíssima, de
    casco gordo e velas gordas, à bolina numa maré alta de pelos e qual das duas portas a
    da colega Santo Deus, para além de não me recordar pôs-se o seguinte problema: será
    que o direito à direita e o esquerdo à esquerda de quem sobe as escadas porque no caso

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