António Lobo Antunes - Até Que as Pedras se Tornem Mais Leves Que a Água PT (2017)

(Carla ScalaEjcveS) #1

  • Amor
    com ele imagine, o seu

  • Amor
    que maçada, com ele, tenha paciência leve o tal

  • Amor
    também, a tal camisa de dormir, as tais alças fininhas, as tais rendas já gastas, tire os
    chinelos da mesa de cabeceira e esse gancho ou pinça ou lá o que é de tomar banho que
    vi junto ao sabonete numa coisa de metal, apague tudo o que é você da nossa vida e já
    agora da casa, até desta ruína aqui na aldeia onde se tropeça em si a cada passo, uma
    agulha de croché a brilhar num risco do sobrado, um lenço caído atrás da cômoda, o
    prato de barro com ceifeiras suspenso de três ganchinhos na pa, o homem da oficina
    após cumprimentos e a doença de um filho que a policlínica não há maneira de
    entender, o problema está nas crianças que não se explicam, lamentam-se, apontam a
    barriga e acabou-se, lá acabou por encher um bidon de gasolina, o prato de barro com
    ceifeiras suspenso de três ganchinhos na parede, meteu o bidon na furgoneta faltava o
    anelar da mão esquerda, cortado pela tropa

  • Mata mata
    ao entrarem de súbito, vindos do nada e disparando sem cessar no quimbo onde
    durante a guerra ele vivia conforme suponho que a mãe dele
    (em Angola eu não tinha mãe ainda, tinha uma pessoa que me estendia o peito e
    peço-vos por favor que não alterem o que eu penso, a minha mãe está aqui viva da
    costa, não a morrer de cancro, incomodada unicamente por pedras e as pedras curam-
    se, é evidente que se curam, é óbvio que se curam, curam-se)
    conforme suponho que a mãe dele sem orelhas e de mãos cortadas, olha as galinhas
    a quem a tropa arranca a cabeça, pequenas, magras, a trotarem ainda, olha tantas
    pessoas a fugirem, olha eu suspenso à espera, o homem da oficina parou a furgoneta
    junto ao meu automóvel

  • Daqui a casa do seu pai à pata é um esticão que não acaba
    e a estrada tão diferente de dia, sem cubatas, sem cabras, sem cabíris, sem a jangada
    de atravessar o rio, sem os pássaros pequenos poisados nos crocodilos, sem homens a
    fumarem mutopa que me olhavam, árvores muito menores que as de Angola e que não
    me ameaçavam nem gemiam, alcatrão em lugar de poeira, ervinhas em lugar de capim,
    uma chuva rala, sem eco, quase nenhum cheiro na terra, quase nenhuma presença de
    mortos, nem um relento de mandioca, nem uma esteira, o meu pai não novo nem de
    camuflado, um velho meio pobre, à paisana, porque você velho, não desejo ofendê-lo
    mas você velho, se lhe entregassem uma canhota ficava a olhá-la indeciso sem se atrever
    a puxar a culatra

  • Como é que isto trabalha?
    o automóvel inclinado na berma num abandono triste, já antigo, já riscado, ao qual
    não sei quem, ontem ou hoje, roubou um dos pneus, só mulheres na casa da aldeia
    agora, a minha mãe, a minha irmã, Sua Excelência a mudar de roupa no quarto, quem
    me garante que não acompanhada da amiga, quem me garante que não a pedir-lhe

  • Beija-me mais

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