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H10 Especial QUARTA-FEIRA, 1 DE ABRIL DE 2020 O ESTADO DE S. PAULO
Leandro Karnal
FESTIVAL
DE JAZZ
NA SALA DE CASA
Com a interrupção do calendário mundial de shows, o Montreux
Jazz Festival libera 35 títulos memoráveis para ser vistos de graça
l]
Julio Maria
No ano em que a música parou, a
música ao vivo, um jejum inédi-
to que nem a Segunda Grande
Guerra provocou, companhias
seguem abrindo seus arquivos
de forma gratuita. Agora, a em-
presa que se junta ao espírito do
todos em casa é a marca Mon-
treux Jazz Festival, que come-
çou a lançar em DVD, nos anos
2000, lotes de apresentações
que passaram pelo lendário festi-
val fundado por Claude Nobs na
Suíça. São 35 títulos, todos com
nomes no topo do jazz, do blues,
do rock e da música pop criada a
partir dos Estados Unidos. Feito
para ser uma marca de referên-
cia no jazz em 1967, o Montreux
abriu gradativamente as portas a
outros gêneros assim que suas
plateias começaram a crescer.
Os interessados em assistir aos
shows, todos muito bem grava-
dos e mostrando artistas em mo-
mentos sublimes, nem sempre
no topo, mas jamais em decadên-
cia, só precisam percorrer um ca-
minho rápido, acessando a plata-
forma Stingray (para ir direto,
basta entrar em stin
gray.com/FREEMJF1M) e usar o
código FREEMJF1M. São muitos
shows para assinantes, mas bus-
que por Montreux Jazz Festival
na lupinha que o paraíso se abri-
rá. Marvin Gaye em 1980; James
Brown no mesmo ano; Quincy Jo-
nes duas vezes,
em 1996 e por
ocasião de seus
75 anos celebra-
dos com um es-
pecial, em
2008; Nina Si-
mone no em-
blemático
1976; Etta James pré-cirurgia ba-
riátrica, ainda com seus quase
200 quilos de potência vocal; Ray
Charles em 1997; o bluesman Al-
bert Collins, em 1992; Carlos San-
tana em 2004 e 2011; o grupo de
rap Wu-Tang Clan, em 2008; Phil
Collins duas vezes, em 2004 e
com big band, em 1996, sem falar
na participação que faz na come-
moração de Quincy Jones cantan-
do duas músi-
cas. E a lista vai
longe, com
Johnny Cash,
Patti Smith, Je-
thro Tull, Yous-
sou N’dour,
Alanis Moris-
sette. Apesar
de Nobs abrir uma noite brasilei-
ra em todas as edições, pelas
quais passaram Elis Regina fazen-
do dueto histórico com Hermeto
Pascoal em 1979 e vendo surgir a
fake news de que o alagoano ten-
tou derrubá-la entortando a har-
monia das músicas até o limite do
suportável, Gilberto Gil, Ivan
Lins e até É o Tchan, em 1997, não
há nenhum título do catálogo bra-
sileiro liberado nesta leva.
Nina Simone foi ao palco do
Montreux em um ano difícil pa-
ra ela, 1976. Seu casamento esta-
va em frangalhos e seus nervos
massacrados por um transtorno
de bipolaridade tardiamente
diagnosticado. Nina estava per-
dendo tudo, amores, amigos e
contratantes, mas Claude Nobs
confiou que dali sairia uma gran-
de apresentação, por mais impre-
visível que poderia ser, e arris-
cou. Nina subiu ao palco e, logo
em sua saudação, protagonizou
uma cena que acabaria usada no
filme Nina e no documentário
What Happened, Miss Simone? , am-
bos na Netflix. Ela se curva peran-
te os aplausos e fica na mesma
posição por um tempo longo de-
mais. Se levanta, olha com aque-
les olhos imensos e cheios de al-
guma raiva que só ela sabia qual,
vai ao piano e começa a tocar Lit-
tle Blue Girl com uma voz vacilan-
te que ganha corpo com o tempo.
Backlash Blues fica sublime e I
Wish I Knew mostra seu piano
blues que ela equilibrava ao lado
do ímpeto barroco, resquícios de
quando queria se tornar a primei-
ra concertista negra dos Estados
Unidos, algo que uma reprova-
ção de ingresso na Juilliard
School não permitiu.
Ray Charles chega com tudo
em 1997. Um sorriso enorme, um
terno elegante e uma orquestra
com grandes instrumentistas nor-
te-americanos, liderada pelo saxo-
fonista Al Jackson. Aos 67 anos,
sua voz é firme, suas mãos ágeis e
seu timing, preciso, apesar de to-
da a heroína consumida nos anos
- Com o palco cheio, e direito às
quatro mulheres que faziam
backing batizadas desde sempre
como The Raelettes, ele passa por
I Can’t Stop Loving You , Song For
You , Busted , Mississippi Mud. Ain-
da se emocionava como se hou-
vesse acabado de compor Georgia
on My Mind e se tornava incendiá-
rio quando chamava suas garotas
para fazer What’d I Say , seu maior
contra-ataque ao império do rock
britânico nos anos 1960. Mais do
que qualquer outra canção, até
mesmo do que Hit The Road Jack ,
que curiosamente não está no
show, What’d I Say foi seu sucesso
mais estrondoso.
Quincy Jones é uma entidade,
um dos primeiros a cruzar a
música das partituras à das rá-
dios. Os músicos o amam, o pú-
blico também. Em sua primeira
passagem, em 1996, estava como
regente da própria obra, diante
de uma orquestra com Steve Fer-
rone na bateria e Greg Phillinga-
nes nos teclados. Patti Austin,
uma de suas cantoras favoritas,
canta Perdido e Phil Collins, mes-
mo não sendo sua praia, Do No-
thing Till Your Hear From Me. No
segundo título, o show é em co-
memoração aos seus 75 anos. Se
só puder assistir a uma faixa, es-
colha Miss Celie’s Blues , um dueto
dos agudos cheios de corpo e vo-
lume de Chaka Khan com a ele-
gância nunca descontrolada de
Patti Austin. Apenas três minu-
tos, e o seu dia estará a salvo.
No Brasil, o produtor Marco
Mazzola anuncia que o braço
no País do festival suíço, o Rio
Montreux Jazz Festival, teve de
adiar sua temporada. Um comu-
nicado emitido pelas empresas
realizadoras do festival, a
Dream Factory e a MZA Music,
de Mazzola, diz o seguinte:
“Diante da gravidade no cená-
rio mundial e no Brasil e em
cumprimento às medidas pre-
ventivas do Ministério da Saú-
de diante da covid-19 (corona-
vírus), a organização do Rio
Montreux Jazz Festival comu-
nica o adiamento da segunda
edição do evento, inicialmente
prevista para o fim do mês de
maio”. As novas datas serão en-
tre 22 e 25 de outubro, no mes-
mo Píer Mauá. A programação,
que estava prestes a ser anun-
ciada, está sendo reconfirmada
com cada artista para ver a via-
bilidade das datas. O comunica-
do diz ainda: “A Dream Factory
e a MZA Music acreditam que
não realizar o festival neste mo-
mento é pensar de maneira co-
letiva. A prioridade é a saúde de
todos os envolvidos: público,
equipe e artistas”.
Mazzola adianta que, a exem-
plo do que a sede de Montreux
está fazendo, ele também quer
começar a disponibilizar al-
guns títulos audiovisuais de
shows que poderão ser vistos
em casa. Os títulos e as datas
devem ser anunciados em bre-
ve, em um cronograma pensa-
do pela Mazzola Music.
Primeira edição. O Estado es-
teve na cobertura da primeira
edição do Rio Montreux Jazz
Festival, em 2019. O local, o
Pier Mauá, se mostrou um acer-
to pelo acomodamento do line
up e pelo charme de onde fica,
às margens da Baía de Guanaba-
ra. Dois grandes galpões cober-
tos foram usados, um para gran-
des concentrações e outro para
médias. Mazzola conseguiu reu-
nir um time de grandeza, atraí-
dos pela marca, Montreux, e pe-
la cidade. Vieram, e fizeram
grandes apresentações, o baixis-
ta Stanley Clark, o guitarrista Al
Di Meola, o percussionista Pau-
linho da Costa, o multi-instru-
mentista Hermeto Pascoal, to-
cando com febre, mas arrasan-
do, a cantora pop Corine Bailey
Rae e outro grande guitarrista,
Steve Vai. / J.M.
Quincy
Jones.
Compositor
tem dois
shows no
lote dos
liberados
SE QUISER VER UMA
ÚNICA CANÇÃO, ASSISTA A
‘MISS CELIE’S BLUES’ E
SALVE O SEU DIA
ESCREVE ÀS QUARTAS-FEIRAS E AOS DOMINGOS
RIO MONTREUX FARÁ LANÇAMENTOS
DENIS BALIBOUSE REUTERS
R
ita Hayworth nasceu no
Brooklyn (NY), em 1918. Seu
nome de batismo denuncia-
va a ascendência latina: Margarita
Carmen Cansino. Mulher linda, trei-
nada pelo pai em dança, começou ce-
do a carreira no cinema. Em 1946, aos
28 anos, fez o papel que a imortaliza-
ria como uma deusa sexy, símbolo
absoluto do feminino de sensualida-
de devastadora. No filme, quando
ela tira sua longa luva, causa mais fu-
ror do que os strip-teases comple-
tos. Gilda fumando é uma cena úni-
ca, em época de sedução associada
ao cigarro e à ousadia.
Há uma frase associada à atriz Rita
Hayworth após o sucesso de Gilda.
Ela reclamava que os homens se
apaixonavam por Gilda e acorda-
vam ao lado de Rita. A atriz casou-
se cinco vezes. As uniões foram,
quase todas, muito infelizes. Seria
isso? Bem, ela teve um casamento
ruim aos 18 anos, bem antes do su-
cesso do filme. Talvez o mito Gilda
não possa levar toda a conta da dor
de Rita. Porém, com certeza, o abismo
entre a personagem e a mulher real é
algo que poderia ser interessante para
pensar Marilyn Monroe, Maria Callas,
Elizabeth Taylor e a própria Rita.
Recebo muitas celebridades na mi-
nha casa. Noto, por vezes, que as pes-
soas menos conhecidas ficam um pou-
co fascinadas e incomodadas ao mes-
mo tempo ao lado delas. Talvez, imagi-
nem que aquela atriz belíssima viva
sendo linda e fascinante em todos os
momentos. Diante do intelectual mi-
diático surge a vontade de manifestar
algo inteligente sempre. Ao conversa-
rem com um músico conhecido, mui-
tos imaginam que o ouvido seja o úni-
co campo de interesse do convidado e
ficam trazendo tudo o que conhecem
do mundo das notas para a conversa.
Poucas pessoas conseguem entender
que a atriz é também mãe, que faz com-
pras, que fica gripada, que tem insegu-
rança em algum campo e que, acima
de tudo, naquele instante festivo, pro-
vavelmente não deseje fazer o papel
de diva. Rita quer ser Rita e não Gilda,
e, mais incrível, existe a hipótese de
ela desejar uma noite como Margarita,
seu eu anterior a Gilda e a Rita.
O mal é universal: personagem e ser
humano concreto, rosto e máscara, ce-
na e eu interior. Amigos médicos recla-
mam dos hipocondríacos de toda festa
que querem uma endoscopia ali, com o
copo de gim-tônica na mão. Pediatras
sofrem mais do que a média. Enuncia-
do o nome reumatologista e o grupo
elenca, em anamneses intermináveis,
todas as suas dores ou as de familiares.
Infectologistas devem preparar uma
breve preleção sobre coronavírus entre
o caldo e a carne principal. Penso em
uma hipótese: apenas proctologistas
ou especialistas em disfunção erétil es-
tejam isentos do debate público em fes-
tas. Claro, é uma hipótese, porque a von-
tade de atenção está um pouco fora de
controle hoje.
Vou ampliar o pensamento. Eu con-
templo aquele político desagradável.
Examino sua fala em público. Noto con-
trações do lábio, pequenos atos nervo-
sos, mãos inquietas, deslizes gramati-
cais e um olhar incomodado com a si-
tuação da entrevista. Imagino Gilda
atuando, sem a beleza ou o talento de
Rita. Analiso a personagem na ribalta
do poder e suponho o pai de família, o
amigo, a pessoa fora daquele ambiente.
Não é um gesto de compaixão no senti-
do clássico, está mais para tentar enten-
der algo mais complexo do que aquilo
que aparece. Na verdade, sou fascinado
pelas máscaras para entender o que
ocultam. Funciona como a burca. Es-
tou na rua de um lugar no exterior (po-
de ser Londres ou Cairo) e passa ao
meu lado uma mulher de burca comple-
ta. Nada denuncia quem está sob os pa-
nos escuros. Porém, ao passar do lado
dela, um perfume intenso fica no ar. A
sinestesia misteriosa faz supor como se-
rá aquela pessoa que eu não vejo, ape-
nas sinto. Tenho a sensação de que a
maioria dos políticos ostenta a burca
para falar. O cargo, a timidez, a situação
ou as más intenções jogam um pano pe-
sado sobre ele. Sob a roupa ritual, um
outro perfume (ou fedor) insinua-se.
Todos julgam o que podem ver, dizia
Maquiavel no célebre capítulo 18 do
Príncipe , poucos são capazes de perce-
ber quem a pessoa de fato é. E quan-
do Gilda tira a maquiagem, quando
despe as burcas de Hollywood, vira
Rita. Etapa seguinte: quando Rita re-
laxa e não se sente observada, ela per-
mite que a frágil Margarita tire a se-
gunda máscara. A filha de espanhol
com sangue cigano não precisa fu-
mar como Gilda e nem precisa ter o
cabelo de Rita Hayworth. Todas as
burcas podem ser retiradas. O que
veríamos se todos os políticos pudes-
sem ser eles mesmos? Seria, sob o
horror aparente de Quasímodo, um
espírito doce? Ou, pelo contrário, Do-
rian Gray mostraria o rosto escondi-
do no sótão?
O mês de abril começa com o dia
da mentira. O filósofo Epicteto dizia
que, se ouvir alguém falar mal de vo-
cê, deveria existir alegria, porque as
pessoas só saberiam aquela maldade
para lançar na sua cara. Imagine se
soubessem de tudo? Imaginemos to-
dos, políticos e médicos, jornalistas e
esposas, funcionários e maridos, eu e
você, despidos de todas as máscaras.
Quem se deitaria com qualquer Gil-
da se soubesse de tudo? É preciso ter
muita esperança e... não ter tanto co-
nhecimento sobre os outros.
O abismo entre a personagem e
a mulher real poderia ser usado
para pensar Marilyn, Callas, Liz
Rita e Gilda
JEAN-CHRISTOPHE BOTT/EFE/EPA
Ray Charles. Em 1997, levou até as Raelettes para o palco