National Geographic - Portugal - Edição 229 (2020-04)

(Antfer) #1
NUM CERTO SENTIDO,
AS ALTERAÇÕES CLIMÁTICAS
SÃO UMA OPORTUNIDADE
PARA AGIRMOS E EVOLUIRMOS
COMO ESPÉCIE.

GUIA DO OPTIMISTA | ONDE ESTAREMOS EM 2070?


DURANTE MUITOS ANOS, dediquei-me à ciência das extinções e das alterações cli-
máticas e procurei soluções na tecnologia e nas políticas públicas. Entretanto, na
minha vida privada, combati pela justiça em prol dos pobres e dos oprimidos. Demo-
rei muito tempo até interligar essas batalhas e a tomar consciência de que forças
como o colonialismo e o racismo fazem parte da crise climática e precisam de ser
abordadas como parte da solução.
Os principais benefi ciários dos combustíveis fósseis não costumam ser as comu-
nidades que mais sofrem devido ao seu consumo. As centrais electroprodutoras
e os seus fumos de escape tóxicos, por exemplo, encontram-se desproporcional-
mente presentes em bairros pobres e sem habitantes caucasianos. O desequilíbrio
atravessa fronteiras: uma análise sugeriu que o fosso do PIB per capita entre os
países mais ricos e os mais pobres já é 25% maior do que seria sem as alterações
climáticas, em grande medida porque o aumento das temperaturas nos países tro-
picais diminui a sua produtividade agrícola. A ocorrência de tempestades, secas e
cheias de maior dimensão já está a afectar os mais pobres do mundo.
A verdadeira justiça climática tornaria a Terra mais resiliente e, ao mesmo tem-
po, ajudaria a humanidade a sarar o historial de traumas e sofrimento. Num certo
sentido, as alterações climáticas são uma oportu-
nidade para agirmos e evoluirmos como espécie.

AGORA HÁ UMA NOVA COSTUREIRA na minha famí-
lia. A minha fi lha, de 10 anos, adora costurar. Gosto
de imaginar como será a sua vida quando chegar
aos 60. A primeira coisa em que reparará quando
acordar no seu apartamento citadino em 2070 é o
canto dos pássaros: um coro ensurdecedor à alvo-
rada, um relógio de alarme sinfónico composto por
inúmeras espécies. É fácil de ouvir, porque já não
existe o ruído do trânsito. Vai acender a luz, produ-
zida por telhas solares que revestem praticamente
todos os telhados da cidade. O próprio edifício onde
ela vive foi construído com “blocos reutilizados”,
feitos de carbono recuperado da atmosfera.
Vai levantar-se e beber um café. Vai apanhar
um comboio com zero-emissões que pára auto-
maticamente durante dois minutos porque as câ-
maras posicionadas ao longo da linha detectam uma família de raposas a apro-
ximar-se da ferrovia. O céu apresenta-se azul e límpido, sem qualquer nuvem de
poluição, embora ligeiramente mais quente do que em 1970. Ao longe, avistará
elegantes turbinas eólicas a girar.
Receberá uma mensagem: é um convite para comemorar o 100.º Dia da Terra.
Será uma festa, não uma manifestação de protesto. Já não há políticos relutan-
tes para convencer, nem automóveis a gasolina para enterrar. Vai haver uma
banda e um baile, seis tipos de tacos sem carne e fi gueira-da-índia importada da
Nação Kumeyaay, nos arredores de San Diego.
Enquanto caminha pela rua, vai parar e apanhar do chão meia dúzia de fru-
tos de eucalipto, lembrando-se vagamente de que, no princípio do século XXI,
se discutiu se essas árvores deveriam ou não ser todas cortadas, por não serem
oriundas do continente americano. Pegando nelas, decide cosê-las em torno do
colarinho do vestido verde que vai usar na festa.
Depois, receberá outra mensagem: Sou eu! Tenho 91 anos e também quero
ir à festa. j
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