O Estado de São Paulo (2020-04-05)

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O ESTADO DE S. PAULO DOMINGO, 5 DE ABRIL DE 2020 Metrópole A


ROSELY


SAYÃO


C


rianças e adolescentes estão
confinados há duas sema-
nas. Sem colegas, sem poder
brincar em outros locais, sem a pos-
sibilidade de sair com amigos para
festas, viajar, eles estão, agora, mais
do que confinados: estão isolados
de seus relacionamentos regulares.
No início, com o fechamento das
escolas, parte das crianças e adoles-
centes comemorou. Difícil para eles
não identificar esse período com fé-
rias. Nos primeiros dias, muitas fa-
mílias entraram quase que em esta-
do de hiperatividade com as crian-
ças. Foi um tal de inventar brincadei-
ras, procurar dicas na internet e tro-

car experiências com outras famílias
que só vendo, o que tornou os dias bem
ocupados para todos. A maioria das
crianças respondeu positivamente, e o
fato animou as famílias.
Mas os dias foram passando: uma se-
mana, duas, trancados em casa, e o que
parecia estar funcionando até então
deixa de ter tanta eficácia. Hoje, é mais
frequente ver crianças cansadas, irrita-
das e entediadas com tantas brincadei-
ras e pais sem criatividade para buscar
estratégias diferentes e já com pouca
paciência. Foi só então que se torna-
ram evidentes as emoções que crian-
ças e adultos estão experimentando.
Medo, ansiedade, angústia e, principal-

mente, insegurança e tensão. Talvez
esse tenha sido o motivo principal de
tentar ocupar corpo e mente de todos:
evitar o enfrentamento de nossos sen-
timentos. Bem, agora precisamos lidar
com tudo isso da melhor forma.
Com crianças menores, não adianta
muito tecer esclarecimentos racionais
para tentar convencê-los a se aquieta-
rem. Funciona bem mais buscar o pla-
no simbólico, bem trabalhado nos con-
tos de fadas. Ao ouvir essas histórias, a
criança se defronta com mundos imagi-
nários repletos de problemas e confli-
tos e, ao mesmo tempo, vislumbra dife-
rentes soluções encontradas pelos per-
sonagens. Desse modo, ela pode aquie-
tar algumas de suas emoções.
Deixar as crianças um pouco sozi-
nhas ajuda muito. Afinal, muitas delas
podem estar exaustas com tantas ativi-
dades, mesmo sem saber disso. Claro
que, inicialmente, elas podem recla-
mar, mas, aos poucos e com o acolhi-
mento amoroso e a colaboração dos
pais, podem vir a conseguir estar com
elas mesmas por alguns períodos do

dia, mesmo que curtos. Para preparar
as crianças para esses períodos de
maior tranquilidade, meditação e ioga
ajudam bastante. Na internet há orien-
tações para conduzir as crianças nes-
sas práticas. Você encontra boas dicas
em infanciazen.com.br/videos.
E os adolescentes, como estão nesse
período de isolamento? Precisamos en-
tender que essa situação os colocou de
volta ao passado. O que significa estar
sob a responsabilidade dos pais 24 ho-

ras. Não é à toa que os comportamen-
tos deles reflitam o descontentamen-
to de serem obrigados a viver nessa si-
tuação. E como eles são diferentes en-
tre si e diferentes deles mesmos a cada
dia, as reações são variáveis. Alguns se
isolaram no quarto ou na internet para
se afastar da família, outros entristece-
ram fortemente, outros insistem que

irão sair de qualquer maneira, e ou-
tros, ainda, buscam aqueles idiotas
desafios na internet. E é bom que
pais saibam que já existem desafios
perigosos rolando por aí.
Para ajudar o jovem nesse mo-
mento, podemos, por exemplo, pro-
curar maneiras que permitam que
ele se sinta útil à sociedade. Uma
rápida busca na internet permite en-
contrar as mais diversas campanhas
que precisam de voluntários vir-
tuais. Que tal essa dica? Ajuda, inclu-
sive, o jovem a se perceber como par-
ticipante de uma sociedade.
Não está fácil para nós, adultos,
lidar com nossas questões e as deles
também. Por isso, amorosidade, ge-
nerosidade, compaixão e sensibili-
dade para se colocar no lugar do ou-
tro são fundamentais. Vamos com
coragem e firmeza, minha gente! E
sem culpas, por favor. É a primeira
vez de todo mundo, afinal.

]
É PSICÓLOGA

Renata Cafardo


A pandemia do coronavírus
forçou uma reinvenção da
carreira do professor, já casti-
gada no País por salários bai-
xos e perda de prestígio. De
uma semana para outra, com
o fechamento das escolas, do-
centes da rede particular tive-
ram de se acostumar com câ-
meras, edição de imagens, e
pensar em estratégias que
possam ser executadas da ca-
sa deles – para a casa dos alu-
nos. Os desafios e as angús-
tias são enormes. Há a falta
de treinamento para o ensino
a distância, dificuldade em
avaliar se o estudante está
aprendendo e até o temor de
estarem sendo vigiados por
pais durante as aulas online.

Na última semana, o Estado
ouviu relatos de professores de
escolas particulares, dos que
trabalham com crianças peque-
nas aos que lidam com adoles-
centes. Em comum, a tristeza
pela falta de contato com os alu-
nos e a incerteza sobre quando
voltam à sala de aula. Eles têm
ainda, como todos em isolamen-
to, medo de se contaminar, de
perder familiares e dificuldades
para lidar com os próprios fi-
lhos, também em casa.
A professora de Ciências Ma-
riana Peão Lorenzin, de 35 anos,
mudou-se para um sítio com
marido, mãe e dois filhos peque-
nos, para que as crianças te-
nham mais espaço na quarente-
na. Precisa gravar videoaulas pa-
ra alunos do Colégio Bandeiran-
tes à noite, antes da última ma-
mada do pequeno, de 7 meses, e
quando os passarinhos já para-
ram de cantar, brinca. “Peguei
um quarto só para mim, fecho a
porta e trabalho, fazendo reve-
zamento com meu marido.” E
aprende no dia a dia a nova for-
ma de dar aulas. “Vídeo longo
não funciona, o aluno cansa.”
Ela também está às voltas com
as provas bimestrais, online, es-
ta semana. “Precisam ser ques-
tões que eles possam elaborar so-
bre o conteúdo, refletir, não
achar a resposta no Google.”
Apesar de a escola já se progra-
mar para atividades até junho e
voltar só em agosto, Mariana so-
fre com a distância. “Não é a mes-
ma coisa de ser recebida na sala,
eles compartilham muita coisa
pessoal com a gente. A relação
está restrita ao conteúdo. Não
vejo a hora de isso acabar”, diz.


“Nunca imaginei que uma
professora pudesse fazer home
office”, diz Bárbara Zampini
Preto, de 30 anos, que dá aulas
para 1.º e 2.º ano do ensino fun-
damental no Colégio Magno.
As crianças estão em fase de alfa-

betização e ela exercita a criati-
vidade para ensinar a ler e a es-
crever remotamente. Em aulas
ao vivo, Bárbara pede, por exem-
plo, para o aluno buscar em casa


  • e mostrar na câmera – objetos
    que comecem com determina-


da letra. Os mais velhos têm a
tarefa de digitar no chat pala-
vras com duas ou três sílabas.
Mesmo jovem, é hipertensa,
e só sai de casa para pular corda
no hall do apartamento. Faz tu-
do do quarto, aprendeu a editar
vídeos e se diverte quando os
alunos aparecem de pijama pa-
ra a aula online. “Vai ser um ano
atípico, vamos tentar ao máxi-
mo que não tenha defasagem de
aprendizagem, mas precisamos
baixar um pouco as expectati-
vas, as avaliações”, diz. “Sinto
muita falta do beijo, do abraço
deles, e fico pensando: será que
já perdemos este semestre?”

Lado a lado. Na aula online
com os pequenos, em geral, os
pais precisam estar junto para
ajudar a usar o computador. É
novidade para o professor, acos-
tumado a assumir a educação da
criança na escola. Algumas mães
dão bronca nos filhos quando

consideram que não se compor-
tam na aula virtual, conta Tenile
Fiolo Duarte, de 36 anos, profes-
sora de crianças de 8 anos no Co-
légio Porto Seguro. “Os pais fi-
cam ansiosos. O interessante é
que estão mais próximos da edu-
cação dos filhos agora.”
Outros profissionais temem
a vigilância. Um professor da
área de Humanas, que pediu
anonimato, diz se preocupar
com perseguições políticas de
alunos e pais, incentivadas por
movimentos como o Escola
sem Partido. “Antes tínhamos
medo de ser gravados em sala
de aula, agora, com tudo em ví-
deo, é muito mais fácil alguém
nos acusar de algo e nos expor.”
Outro professor de História e
Filosofia, que também pede
anonimato, conta que as aulas
pela ferramenta Zoom nas esco-
las em que trabalha são grava-
das. Os coordenadores têm
acesso às aulas ao vivo e podem

entrar quando quiserem. “Na
escola, você pode fechar a porta
ou não, mas os coordenadores
batem, pedem licença, é bem
mais respeitoso”, diz ele, que dá
aulas do 6.º ano ao ensino mé-
dio em duas escolas privadas.
“A gente percebe que os pais
estão de olho, vigiando. Em
uma aula, um até soprou a res-
posta de um exercício para a fi-
lha”, completa. Para ele, isso
muda totalmente a relação en-
tre professor e aluno. “É uma
situação bem desagradável.”

Leis. O ensino a distância para
o fundamental só é permitido
no País em emergências, como
a pandemia atual. Mesmo as-
sim, precisa de determinações
locais para que seja contado co-
mo horas no calendário letivo.
Uma medida provisória liberou
as escolas este ano de cumpri-
rem os 200 dias letivos obrigató-
rios e, sim, as 800 horas.

‘Eu tive de gravar dez


vezes o primeiro vídeo’


De uma semana para outra, com fechamento das escolas, docentes da rede particular tiveram de se acostumar com ensino por câmera


PANDEMIA DO CORONAVÍRUS


Lidar com as emoções


E-MAIL: [email protected]
ESCREVE QUINZENALMENTE

Lúcia Regina de Lima Nunes,
de 50 anos, diz que não se sente
muito à vontade ao falar para a
câmera. Mas agora tem um es-
túdio improvisado em casa, on-
de a filha a filma com celular.
Lúcia dá aulas para crianças de
4 e 5 anos em uma escola parti-


cular de Natal. Teve de entrar
na educação a distância há duas
semanas, quando a instituição
fechou as portas por causa do
coronavírus.
“O primeiro vídeo tive de gra-
var dez vezes, eu estava muito
séria, não é como estar com as

crianças na sala”, conta Lúcia.
“A maior dificuldade é não sa-
ber como estão recebendo a au-
la que gravei.” Ela se diz assusta-
da com a situação atual, com os
casos que não param de crescer,
e a filha que mora em São Paulo.
Pesquisa Instituto Península
mostra que 90% dos docentes
estão preocupados com a sua
saúde. E já relatam problemas
psicológicos. “Vejo o risco de is-
so aumentar. Com estrutura
emocional abalada, os professo-
res precisam ainda se ressignifi-

car profissionalmente”, diz a di-
retora executiva do instituto,
Heloísa Morel.
O estudo também mostrou
que a maioria dos professores da
rede privada acha que seu papel
neste momento é interagir com
os alunos on line. Entre os de es-
colas públicas, os índices são bai-
xos. Nas redes municipais e esta-
duais ainda são poucas as iniciati-
vas de ensino remoto e os docen-
tes foram colocados em férias.
“Professores, que tanto recla-
mavam que os alunos falam

muito em sala em de aula, agora
reclamam que ninguém fala na-
da. Todos são ensinados a dei-
xar o microfone no mudo”, brin-
ca Bruno Romano Rodrigues,
de 31 anos, professor de Histó-
ria no Colégio Mary Ward. “O
professor fica um pouco sem
chão quando falta a percepção
do coletivo, de como está a tur-
ma, do que está dando certo, se
precisa fazer pausa, uma piada.
Definitivamente, o presencial é
a maneira de concretizar o ensi-
no e a aprendizagem.”/ R.C.

PARA SABER MAIS

Professor se reinventa para aula online


Nova interação. ‘Os pais ficam ansiosos, é normal, o interessante é que estão mais próximos da educação dos filhos agora’, diz Tenile, do Porto Seguro

‘Fato de até hipertensão ampliar risco preocupa’, diz médico. Pág. A16 }


Compaixão e sensibilidade
para se colocar no lugar do
outro são fundamentais

l Aulas presenciais
A aula remota só é possível
em emergências. Em São Pau-
lo, a escola precisa documen-
tar atividades online para con-
tar como aula.

l Enem e vestibulares
Por enquanto, os calendários
foram mantidos.

DANIEL TEIXEIRA/ESTADÃO - 2/4/

Home office. ‘Nunca imaginei que pudesse fazer’, diz Bárbara

JULIA ZAMPINI RODRIGUES LIMA - 3/4/

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