O Estado de São Paulo (2020-04-05)

(Antfer) #1

%HermesFileInfo:A-12:20200405:
H12 Especial DOMINGO, 5 DE ABRIL DE 2020 O ESTADO DE S. PAULO


Aliás,


O MAL PATRIÓTICO POR MISHIMA


FANATISMO:

Inédita no Brasil, obra narra tentativa de golpe frustrada que acaba em suicídio, antevendo a morte do próprio autor


Flávio Ricardo Vassoler ]


Em Patriotismo (Editora Au-
têntica), o escritor e dramatur-
go japonês Yukio Mishima
(1925-1970), pseudônimo de Ki-
mitake Hiraoka, narra o desen-
lace suicida, por meio do ritual
do seppuku/harakiri, para o te-
nente Shinji Takeyama e sua es-
posa Reiko, após uma tentativa
frustrada de golpe de Estado
perpetrada por jovens oficiais
do Exército Imperial japonês,
no episódio ocorrido em 26 de
fevereiro de 1936.
Bastante ativos nos anos
1920 e 30, os golpistas de extre-
ma direita da facção imperial
pretendiam estabelecer um go-
verno militar, totalitário e impe-
rialista – algo como a versão ni-
pônica do nazifascismo. Dadas
as dissensões e clivagens nas
forças armadas, a moderada fac-
ção de controle conseguiu des-
baratar o golpe e submeter os
oficiais a severas penas discipli-
nares ou até sentenças capitais.
Ainda que não pretendamos
estabelecer, inequivocamente,
ilações entre o fim do tenente
Shinji Takeyama e a morte do
próprio Yukio Mishima, é im-
portante frisar que, em novem-
bro de 1970, o escritor e outros
quatro membros da milícia pri-
vada Tatenokai renderam o co-
mandante do quartel-general
das forças de autodefesa japone-
sas em Tóquio. A Tatenokai (So-
ciedade dos Escudos) defendia
os “valores tradicionais japone-
ses”, tais como a ética samurai;
a prática do kendo, arte marcial
à base de espadas desenvolvida
à época do Japão feudal; e a ve-
neração ao imperador, cujos po-
deres haviam sido cerceados
após a derrota japonesa na 2.ª
Guerra Mundial e a consequen-
te ocupação do país por tropas
americanas. Após a tomada do
quartel-general, Mishima profe-
re um discurso patriótico a fim
de persuadir os soldados a resti-
tuírem plenos poderes ao impe-
rador. Em face da indiferença
da soldadela, ele comete suicí-
dio por meio do seppuku e aca-
ba por emular o fim das persona-
gens de Patriotismo.
Segundo a ética samurai, o


seppuku configura uma morte
altamente honorável, por meio
da qual o suicida se oferece em
holocausto e naufraga, heroica-
mente, junto com a sacralidade
de sua causa. (Resguardadas as
diferenças históricas e cultu-
rais, é possível entrever afinida-
des entre o seppuku e a paixão
de Jesus Cristo, já que, de acor-
do com a tradicional interpreta-
ção católico-protestante, o Mes-
sias teria se oferecido em holo-
causto, por meio da crucifica-
ção, para expiar os nossos peca-
dos). Durante a 2.ª Guerra, o tea-
tro de operações no Pacífico se
viu eivado pela temerária e des-
concertante presença dos ka-
mikazes, pilotos da força aérea
japonesa que, a bordo de aviões
repletos de explosivos, se lança-
vam contra as embarcações nor-
te-americanas, seguindo a mes-
ma lógica de
sacrifício em
nome da cau-
sa sagrada da
pátria em guer-
ra.
Engana-se,
no entanto,
quem imagina
que encontra-
rá, ao longo de
Patriotismo ,
uma narrativa
transpassada
univocamen-
te por um fana-
tismo febril a
ser arrematado pelo esventra-
mento do tenente Takeyama e a
consequente degola de Reiko,
já que, na tradição samurai e pa-
triarcal do seppuku, a mulher,
servil por sua condição, naufra-
ga ao lado do marido.
Mishima centra a trama no re-
cinto forrado por tatames em
que o harakiri terá lugar. Mas, a
despeito da morbidez final, o ca-
rinho e o desejo que marido e
mulher nutrem um pelo outro
despontam nas imagens talha-
das pela ourivesaria do poeta. É
assim que, “alguns meses após
o casamento, a beleza de Reiko
se refinara, tornando-se nítida
como a lua após a chuva”.
Reiko, ademais, “já não se sur-
preendia com o fato de um ho-
mem que até alguns meses an-
tes não passava de um comple-
to desconhecido ter se tornado
o sol de todo o seu mundo”.

Em uma cena de amor arden-
te – é como se o desejo (o falo, o
sêmen) fosse ainda mais aviva-
do pela morte iminente (a espa-
da, o sangue) –, interpôs-se um
silêncio entre Shinji e Reiko, em
meio ao qual “havia uma limpi-
dez semelhante à do curso de
água formado pela neve derreti-
da”. Súbito, enquanto faz cafu-
nés no marido, Reiko discerne
que “a pele do tenente tem um
brilho semelhante ao de um
campo de trigo”. Mas, “antes
mesmo que se dessem conta, os
dois estavam nus diante da cha-
ma do aquecedor. Embora per-
manecessem mudos, seus cora-
ções, seus corpos e seus peitos
ofegantes ardiam com a cons-
ciência de que aquela seria sua
última vez. Era como se as pala-
vras ‘última vez’ estivessem gra-
vadas com tinta nanquim invisí-
vel por todas
as partes de
seus corpos”.
Chegada a
hora da despe-
dida solene e
sagrada, “o te-
nente sentou-
se sobre os cal-
canhares e
pousou o sa-
bre no tata-
me, diante
dos joelhos.
Reiko sentou-
se aprumada
diante dele,
mantendo entre os dois a distân-
cia de um tatame. Por estar toda
de branco, o batom avermelha-
do em seus lábios se destacava
de forma bastante sedutora”.
Diante do entrelaçamento vis-
ceral entre Eros e Tânatos, pul-
são de vida e pulsão de morte na
ardência de Shinji e Reiko, é pos-
sível discernir por que os france-
ses se referem ao cume vertigi-
noso do orgasmo como la petite
mort (a pequena morte).
Tomado pelo sentimento de
honraria militar – como se o te-
nente tivesse levado Reiko para
o campo de batalha, para que a
esposa pudesse testemunhar a
bravura do marido a cavalgar o
dorso da morte –, Shinji se rego-
zija ao pensar que “ter cada mo-
mento de seu fim observado pe-
los lindos olhos de sua esposa
era como se render à morte ao
sopro de uma brisa fragrante”.

“Longa Vida ao Exército Im-
perial!” – assim exclama o te-
nente no momento em que sua
lâmina de guerra está prestes a
retalhá-lo. Enquanto isso,
Reiko luta consigo mesma para
evitar correr ao encontro do ma-
rido no instante em que ele in-
troduz a lâmina no flanco es-
querdo do abdômen. É quando
ela vê, mediada pelo lirismo do
narrador, “o sangue se esvair de
sua face como uma cortina que
se fecha bruscamente”.
A despeito da suma poesia
com que Mishima embebe o ri-
tual, de modo a incensar ainda
mais a aura historicamente ho-
norável do autossacrifício, pre-
cisamos mediar nossa leitura
de Patriotismo com o espírito da
dúvida, esse movimento mun-
dano, herético e inerentemente
avesso a quaisquer fanatismos.
Assim, em contraposição à cer-
teza translúcida que conduz
Shinji e Reiko ao cadafalso, o es-
critor irlandês Oscar Wilde
(1854-1900) nos alerta para o fa-
to de que “uma causa não é ne-
cessariamente verdadeira por-
que alguém morre por ela”. Im-
buídos do espírito cético de Wil-
de (e em oposição ao patriotis-
mo de Mishima), nós assim po-
deríamos sentenciar: melhor
do que uma causa pela qual vale
a pena morrer é uma causa pela
qual vale a pena viver.
Numa época ensandecida e
“enceguecida” por fanatismos
dos mais variados matizes – da
negação da esfericidade da Ter-
ra e do aquecimento global à fal-
ta de afã político e científico,
por parte de líderes tão despre-
parados quanto deslumbrados
com a própria ignorância, para
coibir uma das mais graves pan-
demias de que a humanidade já
foi vítima –, é preciso temperar
a leitura do belo e visceral Pa-
triotismo com pinceladas céti-
cas e bem-humoradas (você já
viu um fanático conseguir rir de
si mesmo?), de modo a insuflar
ar democrático e plural nas cer-
tezas que se petrificam (e nos
aprisionam) em dogmas ditato-
riais. Afinal, ao fanático que des-
preza a própria vida a ponto de
dar cabo de si mesmo em nome
de uma causa (supostamente)
inquestionável, não falta muito
para que a vida do outro se tor-
ne igualmente perecível.

]
É ESCRITOR, PROFESSOR, DOUTOR
EM LETRAS PELA USP, PÓS-DOUTOR
EM LITERATURA RUSSA PELA
NORTHWESTERN UNIVERSITY E
AUTOR DE ‘DIÁRIO DE UM ESCRITOR
NA RÚSSIA’ (HEDRA), ENTRE OUTROS

Literatura*


AUTÊNTICA

Cinema. ‘Patriotismo’, com Mishima no papel do tenente

Paralelo. Autor ( foto ) morreria da mesma forma que Shinji

FUJI TELEVISION NETWORK

Espada. Yukio
Mishima atuou no
filme ‘O Castigo’

PATRIOTISMO
Autor: Yukio
Mishima
Trad.: Jefferson
José Teixeira
Ed.: Autêntica
(128 págs.,
R$ 67,90)

‘UMA CAUSA NÃO É
VERDADEIRA PORQUE
ALGUÉM MORRE POR
ELA’, DIZ OSCAR WILDE

A DESPEITO DA POESIA DE
MISHIMA, É PRECISO
MEDIAR A LEITURA PELO
ESPÍRITO DA DÚVIDA

YUKIO MISHIMA PRODUCTION

i
Free download pdf