O Estado de São Paulo (2020-04-05)

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O ESTADO DE S. PAULO DOMINGO, 5 DE ABRIL DE 2020 Especial H13


Aliás,


Matheus Lopes Quirino
ESPECIAL PARA O ESTADO


Na literatura, se houver rixa en-
tre cães e gatos, o primeiro a latir
perde. Charmosos, peludos, la-
ranjas, negros, brancos, acinzen-
tados, persas, siameses, vira-la-
tas, os gatos conquistaram espa-
ço em antologias. Escritores co-
mo Guimarães Rosa, Ernest He-
mingway, W.H Auden, Elsa Mo-
rante e Elisabeth Bishop posa-
ram para fotógrafos segurando
seus gatos.
A independência felina é um


trunfo nesses relacionamentos.
Entretanto, levar ao pé da letra
essa condição é receita para fic-
ção e não ficção. O companhei-
rismo instiga reflexões profun-
das e historietas infantes. O gato
é um ser observador. Metáfora
do próprio autor, como escre-
veu William S. Burroughs: “Co-
mo todas as criaturas puras, os
gatos são práticos”. O autor de
Junky realiza uma viagem senti-
mental acerca de si, em O Gato
Por Dentro , ele narra os encon-
tros com gatos que marcaram
sua vida, bem como verte a ques-
tionamentos filosóficos, apon-
tando também as muitas seme-
lhanças entre homens e felinos.
É extensa a lista de autores

que dedicaram escritos às criatu-
ras que ronronam, tendo alguns
deles se tornado clássicos como
A Fase Felina de Maurice , de Edith
Nesbit, ou Tom Vieiro , de Mark
Twain. Tema universal e ver-
sátil, discorrer sobre gatos e ga-
tas é como falar da própria vida.
Em O Grande Livro dos Gatos , es-
critores de grande envergadura
contam histórias para além dos
próprios bichanos, discorrendo
sobre as fantasias criadas atra-
vés de séculos na Europa e nos
Estados Unidos.
Cânones da literatura, os con-
tos foram pinçados de outras
reuniões, tornando o volume
um guia atualizado e bem cuida-
do. Entretanto, muito se escre-

veu a respeito de gatos em todo
mundo, caindo o escriba muitas
vezes na tentação da autoficção,
principalmente quando abran-
ge problemas de complexidade
humana – mas também não per-
de comentando com leveza tri-
vialidades do cotidiano.
“Para ela a morte não existe,
como para nós, gente. Ela é mor-
tal, mas não sabe, logo é imor-
tal”, escreveu o poeta e ensaísta
Ferreira Gullar, a respeito de Ga-
tinha, sua escudeira felina, leva-
da a ele pela cantora Adriana Cal-
canhotto, depois de muita recu-
sa em arrumar uma nova masco-
te. Após a morte de seu Gatinho,
animal já ancião, tendo vivido
com o autor do Poema Sujo por
16 anos, Gullar se queixava publi-
camente da falta do gato, tendo
dedicado a ele crônicas, poemas
e até livro, Um Gato Chamado Ga-
tinho , em parceria com a ilustra-
dora Angela Lago.
Ferreira Gullar o considerava
um grande amigo. “Comia comi-
da de gente”, escreveu, comen-
tando hábitos mantidos em con-
junto, como quando o gato o
acordava pela manhã, tornan-
do-se despertador oficial do es-
critor. Discretos, serenos, ele-
gantes, os gatos muito têm a ver
com seus donos. No caso dos es-
critores, cuja rotina silenciosa é
necessária para suas obras, os fe-
linos se encaixam bem nesse esti-
lo de vida, tornando-se imper-
ceptíveis, a vaguear quase como
sombras por entre estantes de

livros, móveis e ambientes.
A americana Patricia Highsmi-
th concordaria com o poeta.
Uma mulher tão elegante, como
avessa a holofotes, dona de uma
prolífica obra, a autora de O Ta-
lentoso Ripley era uma admirado-
ra de felinos, como escreveu em
seu livro Os Gatos : “Gosto de ga-
tos porque eles são elegantes e
silenciosos, e têm efeito decora-
tivo; uns leãozinhos razoavel-
mente dóceis”, defendendo tam-
bém que eles dão menos traba-
lho do que os cães.
Demandando atenção e ape-
go, a comparação aos cães foi
uma sacada utilizada por João
Guimarães Rosa, como quando
Jânio Quadros esteve na casa do
diplomata: “Por que tantos ga-
tos? Geralmente as pessoas pre-
ferem cachorros”, perguntou o
presidente. E o autor de Sagara-
na respondeu com astúcia: “Por-
que os gatos são muitos mais
fiéis aos donos. Já os cachorros
se parecem com certos diploma-
tas, abanam o rabo para qual-
quer autoridade...”
A companhia desses seres é,
no mínimo, motivadora para os
que travam batalhas silenciosas
com o próprio texto. Quando as
ideias falham, surge rompendo
o espectral silêncio um ser de
olhos diabólicos, garras aterra-
doras e negro manto. Os gatos
pretos, para além da literatura,
carregam consigo o estigma do
azar. Dando ou não má sorte, di-
videm opiniões. Superstição de
séculos, a crendice nasceu na
Idade das Trevas, período em
que os bichinhos eram afeiçoa-
dos a pequenas criaturas malig-
nas, habitantes de terreiros de
bruxaria, emissários do próprio
mal. E entre inquisições, foguei-
ras e tacapes, foi no século 15 que
o papa Inocêncio VII decidiu in-
cluir os animais na lista de inimi-
gos da fé cristã. Perseguidos na
Santa Sé, os gatos debandaram a
outras freguesias.
Como no Grande Livro dos Ga-
tos , em que contos antológicos
trazem a figura do gato preto,
personagem de Um Gato Brasilei-
ro , de Arthur Conan Doyle, ou
no conto homônimo de Edgard
Allan Poe. Com requintes de
crueldade, o autor divaga sobre
a performance do humano cruel
ao enforcar seu gato e os desdo-
bramentos do assassinato, mas
não sem pontuar “Nossa amiza-
de durou, dessa maneira, muitos
anos, durante os quais meu tem-
peramento geral e meu caráter –
graças à Diabólica Intemperan-
ça – experimentaram (envergo-
nho-me de confessá-lo) altera-
ção radical para pior. Tornava-
me dia a dia mais caprichoso,
mais irritável, mais indiferente
aos sentimentos alheios.”
Um petisco fino em matéria
de gatos e letras, a edição estran-
geira é mais completa. Nela so-
mam-se aos contos, poemas e en-
saios sobre os bichanos. A reu-
nião de contos de autores estran-
geiros dá nova tradução a clássi-
cos como O Gato de Botas , de
Charles Perraut, republicando
pérolas esquecidas, como Sobre
os Gatos , do contista francês Guy
de Maupassant.

E SUA RELAÇÃO COM OS


GRANDES ESCRITORES


GATOS

Literatura*


O GRANDE
LIVRO
DOS
GATOS
Autor:
Vários
autores
Editora:
Alfaguara
(216 págs.,
R$ 44,90)

ARQUIVO NACIONAL

Paulo Nogueira ]


Se eu pudesse dar um conse-
lho, diria: corram a ler O Inomi-
nável Atual
, de Roberto Calas-
so. Talvez assim falaríamos me-
nos abobrinha e veríamos o
mundo contemporâneo com
mais nitidez.
Calasso tem 79 anos e nasceu
em Florença, numa estirpe api-
nhada de massa cinzenta: o avô
dele rachou uma editora com
Benedetto Croce, e o pai foi rei-
tor da Universidade de Roma.
Desde 1962, Calasso bate ponto
na Adelphi, a mais fina editora
italiana, da qual é presidente.
Ele rejeita a especialização aca-
dêmica do conhecimento mura-
do em baias. Embora arrase em


história, filosofia, artes e antro-
pologia (e, além de italiano, se-
ja fluente em inglês, espanhol,
alemão, latim, grego antigo e
sânscrito), não é um filósofo,
mas um contador de casos – in-
tuindo que as ideias são assimi-
ladas melhor sob a forma de per-
sonagens.
O Inominável Atual é um en-
saio típico do autor, com uma
estrutura oblíqua, pegando o lei-
tor de calça curta: depois de espi-
nafrar o fanatismo místico,
apostamos o pescoço que enal-
tecerá o racionalismo secular,
só para cairmos do cavalo.
O que é o inominável? “Entre
1933 e 1945, o mundo realizou
uma tentativa de autoaniquila-
ção, em parte bem-sucedida. O
que veio depois era amorfo,
grosseiro e poderoso. No novo
milênio, é amorfo, grosseiro e
cada vez mais poderoso. Mes-
mo para os cientistas, é um mun-
do fragmentado. Não tem estilo
próprio e lança mão de todos...
Este é o mundo normal.”

Na primeira parte do livro, te-
mos o fundamentalismo religio-
so, que Calasso examina sob o
terrorismo islâmico. “Que é sa-
crificial: em sua forma perfeita,
é a vítima que pratica o atenta-
do.” O autor invoca a seita me-
dieval do “Velho da Montanha”,
e lembra que, segundo Marco
Polo, a palavra “assassino” vem
de “fumador de haxixe”. Cita
também Rumiyahi , a revista onli-
ne do Estado Islâmico, com sua
lista de possíveis alvos “infiéis”:
“O homem de negócios que vai
ao trabalho de táxi, os adolescen-
tes que se exercitam no parque,
o velho na fila para comprar um
lanche. Não só: derramar o san-
gue do vendedor ambulante que
vende flores aos passantes tam-
bém é louvável”. No fundo, o ini-
migo é sempre o mesmo: o mun-
do secular, de preferência em
suas formas coletivas – espetá-
culos, museus, bares, turismo,
lojas, transportes.
Não que o mundo secular seja
flor que se cheire. “Ao contrário
do ‘homem védico’, que nasceu
com quatro fardos – os deuses,
os reis, os ancestrais e a humani-
dade em geral –, o ‘homo secula-
ris’ não deve nada a ninguém.
Ele está sozinho, e não existe na-
da além do que ele faz.” Avata-
res literários desse espectro ver-
tebrado são “o homem do subso-
lo” (Dostoievski), Bartleby

(Melville) e “o homem sem qua-
lidades” (Musil). Para Calasso,
o profeta do secularismo é o in-
glês Jeremy Bentham, pai do Uti-
litarismo, e sua apoteose é a In-
teligência Artificial e os algorit-
mos.
E a revolução digital? “O sa-
ber assume a forma de uma úni-
ca enciclopédia em perene ex-
pansão, que justapõe informa-

ções verídicas e infundadas, am-
bas acessíveis e no mesmo pla-
no. Todos se viram capazes de
produzir, sem nenhum vínculo,
palavras e imagens divulgáveis
por toda parte, para um público
ilimitado. Foi o que bastou para
criar um delírio de onipotência
difuso (...) A mitomania passou
a fazer parte do bom senso.” É
aquilo que se chama de “Dataís-
mo” – tudo é informação, mes-
mo a pós-verdade.
Para o humanismo, as expe-
riências ocorrem dentro de nós
e devemos encontrar em nosso
interior o significado de tudo.
Mas “os dataístas acreditam
que experiências não têm valor
se não forem compartilhadas e
que não precisamos – na verda-
de não podemos – encontrar sig-
nificado em nosso interior.”
Mas sempre pode piorar:
“No passado, a censura funcio-
nava bloqueando o fluxo de in-
formação. No século 21, ela o
faz inundando as pessoas de in-
formação irrelevante”. E o úni-
co antídoto poderá soar descon-
certante: “Atualmente, ter po-
der significa saber o que igno-
rar.” Portanto, acrescento eu,
Sócrates tinha razão: “Só sei
que nada sei”.

]
É AUTOR DE ‘O AMOR É UM LUGAR
COMUM’ (INTERMEIOS)

Com Edgar Allan Poe, Balzac e Maupassant, livro reúne os


melhores contos escritos no exterior sobre os felinos


GIORGIO MAGISTER/ADELPHI EDIZIONES
Calasso.
Para autor, o
secularismo
é o alvo do
terrorismo,
mas tem
suas falhas

GÉRARD RONDEAU/BRITANNICA

Diplomata. Guimarães Rosa

Ilustração. Poe e seu gato

Ensaísta italiano faz uma


análise afiada da era


contemporânea a partir


do fanatismo religioso e


da revolução digital


A MODERNIDADE


PARA ROBERTO


CALASSO


THE POE MUSEUM

Felina. Patricia
Highsmith tem
um livro dedicado
aos bichanos

O INOMINÁ-
VEL ATUAL
Autor: Roberto
Calasso
Tradução:
Federico
Carotti
Editora: Cia.
das Letras
(184 págs.,
R$ 89,90)

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