O Estado de São Paulo (2020-04-05)

(Antfer) #1

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A6 Política DOMINGO, 5 DE ABRIL DE 2020 O ESTADO DE S. PAULO


VERA


MAGALHÃES


A


semana que se encerra neste
domingo começou com o pre-
sidente do Brasil, Jair Bolsona-
ro, dobrando a aposta no negacionis-
mo e saindo para um rolê pelas cida-
des-satélites de Brasília. Termina
com sua autoridade ainda mais des-
gastada e sua figura reduzida à do ca-
pitão da reserva que sempre foi.
Assim como grande parte dos bra-
sileiros e do resto do mundo, e por
mais que esperneie contra ele, Bol-
sonaro está em isolamento radical.
Está confinado num labirinto, cada
vez mais solitário e sem contato
com a realidade. Que outro chefe de
Estado conseguiu a proeza de se in-

dispor, em maior ou menor grau e qua-
se simultaneamente, com o próprio mi-
nistro da Saúde, a Organização Mun-
dial da Saúde, os governadores de qua-
se todos os Estados, os presidentes da
Câmara e do Senado, a imprensa e o
Supremo Tribunal Federal em plena
pandemia do novo coronavírus?
Por que a insistência quase obsessi-
va em trazer para o centro da discussão
o fim do distanciamento social, as pes-
quisas com hidroxicloroquina, jejum e
oração quando o foco deveria ser fazer
os recursos já aprovados pelo Legislati-
vo chegarem à ponta, aos mais necessi-
tados?
Por que as redes ligadas e guiadas

pelos Bolsonaro insistem em concla-
mar para este domingo manifestações
que vão contra um consenso global, de
que só o distanciamento social (que
por ora no Brasil não é radical, aliás,
longe disso) pode nos fazer aproveitar
a grande vantagem comparativa que te-
mos em relação ao resto do mundo: o
fato de estarmos algumas semanas
atrasados na epidemia e podermos
aprender com o que tem dado certo e
errado nos outros países?
São perguntas sinceras, não retóricas.

Porque por mais que converse com po-
líticos, economistas, analistas políticos
e auxiliares de Bolsonaro não consigo
ver cálculo – ou “método”, para usar a
expressão consagrada pelo grande Car-
los Andreazza – nas escolhas de um go-
verno cada vez mais abilolado, na apos-
ta de Bolsonaro num caos que já acaba

com sua imagem e, no longo prazo, po-
de aniquilá-lo.
Diferentemente das vezes em que te-
ve êxito em se apresentar como baluar-
te anticorrupção sem nunca ter dado
nenhuma contribuição ao combate à
corrupção, ou em furar a fila do antipe-
tismo depois de uma vida dedicada ape-
nas às causas miúdas e corporativas, e
em posar de austero enquanto pratica-
va rachadinha, punha os filhos na políti-
ca e com eles construía um patrimônio
invejável, empregava funcionários-fan-
tasmas, usava auxílio-moradia tendo
imóvel próprio e condecorava milicia-
nos, no caso de uma pandemia em que
pessoas morrem às dezenas dia após
dia narrativa não serve para absoluta-
mente nada.
É por isso que por mais que o presi-
dente deambule em ziguezague em seu
labirinto, guiado por filhos igualmente
desnorteados e assistido por ministros
cada vez mais omissos e coniventes, ele
não chega à saída. Porque só uma capi-
tulação diante dos fatos e a rendição à
racionalidade podem evitar que, mais

cedo ou mais tarde, o capitão seja
visto por todos, até pelos que ainda
hoje insistem em passar pano para
seus abusos e suas sandices, como
inviável para conduzir o País numa
crise absoluta e definidora do futuro
de toda a humanidade.
Bolsonaro precisa:


  • Fazer com que o Ministério da
    Economia vença a catatonia de ter vis-
    to sua agenda mudar radicalmente e
    distribua de uma vez a Renda Básica
    Emergencial;

  • Parar de sabotar Luiz Mandetta e
    deixá-lo comandar a ação integrada
    com governadores e prefeitos,

  • E deixar de falar do que não enten-
    de, de isolamento social a medica-
    mentos.
    Se conseguir esse programa míni-
    mo, que não requer brilhantismo
    nem grande coragem de estadista, da-
    rá a melhor contribuição de que é ca-
    paz para que atravessemos esse pesa-
    delo e saiamos do labirinto em que
    estamos enfiados com aquele que de-
    veria nos conduzir.


E-MAIL: [email protected]
TWITTER: @VERAMAGALHAES
POLITICA.ESTADAO.COM.BR/COLUNAS/VERA-MAGALHAES/

O capitão em seu labirinto


O vice-procurador-geral eleito-
ral Renato Brill de Goés deu pa-
recer pela admissibilidade de
uma ação de cancelamento de re-
gistro de partido político do Par-
tido dos Trabalhadores. A mani-
festação foi apresentada no dia
27, no âmbito de requerimento


que alegava que “no curso da
operação Lava Jato restou de-
monstrado que o PT recebeu re-
cursos de origem estrangeira”.
Goés se baseou na Lei dos Par-
tidos Políticos, que manda o Tri-
bunal Superior Eleitoral (TSE)
determinar o cancelamento do
registro civil e do estatuto do
partido que tenha recebido “re-
cursos financeiros de procedên-
cia estrangeira”. “Forçoso reco-
nhecer a existência de indícios
suficientes do recebimento, por
parte do Partido dos Trabalha-
dores, via interpostas pessoas,

de recursos oriundos de pessoas
jurídicas estrangeiras (Keppel
FELS e Toshiba), inclusive para
pagamento de despesas contraí-
das pelo próprio partido, a evi-
denciar, em tese, interesse dire-
to da instituição partidária e não
apenas de dirigente seu, circuns-
tância que autoriza o prossegui-
mento do feito”, escreveu o vi-
ce-procurador. A manifestação
foi dada no âmbito de requeri-
mento que corre no TSE sob rela-
toria do ministro Og Fernandes
desde julho de 2019 e é de auto-
ria do deputado federal Heitor

Pereira Freire (PSL-CE).
Eugênio Aragão, advogado do
PT, afirmou que os argumentos
dessa ação foram “reiterada-
mente apreciados e rejeitados
pelo TSE”. Segundo ele, o parti-
do político, conforme jurispru-
dência uníssona, não pode ser
sancionado em virtude de even-
tuais condutas ilícitas de alguns
dirigentes, sob pena de violação
ao princípio constitucional da in-
transcendência das penas. A pre-
sidente do PT, deputada Gleisi
Hoffman (PR), afirmou por
meio de nota que “é ultrajante o
parecer do vice-procurador-ge-
ral eleitoral”. / PEPITA ORTEGA,
RAFAEL MORAES MOURA E LUIZ
VASSALLO

ENTREVISTA


Adriana Ferraz


Autor de mais de 40 livros, o fi-
lósofo Mario Sergio Cortella,
de 66 anos, acredita que o en-
frentamento da pandemia do
coronavírus pode deixar al-
guns legados para a sociedade,
além dos problemas sanitários
e econômicos. Para ele, a ciên-
cia e a mídia devem recuperar
sua credibilidade, e o distancia-
mento social pode ser uma
oportunidade para fazer coisas
que o “cotidiano atribulado”
não permite.
Ao responder sobre o que
acha da atuação do presidente
Jair Bolsonaro na crise, Cortel-
la lembra que é importante,
neste momento, que as lideran-
ças políticas sejam didáticas e
transparentes ao se comunicar
com a população. “Não esta-
mos tendo ainda esse conjun-
to virtuoso por parte de quem
deveria”, disse na entrevista,
respondida por e-mail. O filó-
sofo diz que tem seguido as
orientações para ficar em casa
e que, desde que começou seu
distanciamento, só saiu de car-
ro duas vezes.
Leia os principais trechos da
entrevista:


lO sr. acha que vivemos uma
situação de guerra? Nessa situa-
ção, o coronavírus é o único inimi-


go? Ou também devemos comba-
ter a negação à ciência e a propa-
gação de fake news?
O vírus já resulta em malefício
suficiente sem que precisemos
perder energia lidando com ne-
gações contínuas que tentam
nos enganar ou que implicam
má e falsa informação. Ainda
assim, um saldo menos virulen-
to deste momento será uma
maior seletividade de fontes e
uma retomada da confiabilida-
de e credibilidade de institui-
ções, como a ciência e a mídia
decentes.

lAs pessoas esperam uma lide-
rança do presidente da Repúbli-
ca nesse momento? Acha que a
atuação de Jair Bolsonaro, quan-
do ataca medidas de restrição de
circulação adotadas em todo o
mundo, pode frustrá-las?
Toda liderança precisa, acima
de tudo, ser didática, transpa-
rente e nítida nas trilhas que
sugere e nos esforços que esti-
mula. Não estamos tendo ain-
da esse conjunto virtuoso por
parte de quem deveria.

lA que o sr. atribui a lentidão na
tomada de decisão de alguns pre-
sidentes, como Bolsonaro, Do-
nald Trump e López Obrador, e
como vê o desprezo pela ciên-
cia?
A ciência, de modo geral, não é
infalível. É preciso submeter
intenções, processos e resulta-
dos à análise crítica dos pares
e, inclusive, admitir ser des-
mentido, advertido ou ultra-
passado, sem que soe como
ofensa ou desacato. Nem to-
das as pessoas têm permeabili-

dade intelectual para tais requi-
sitos, e, por isso, costumam
menosprezar e subestimar a va-
lidação que ultrapasse a opi-
nião vulgar.

lComo o senhor vê esse supos-
to dilema entre salvar vidas e
salvar a economia?
Relegar qualquer um dos polos
à penumbra será funesto. Não

há pessoas vivas sem econo-
mia operante e não há econo-
mia sem pessoas salvas. O cru-
cial agora é discernir quais pro-
cedimentos são prioritários.

lNos últimos dias, vimos panela-
ços contra o presidente e tam-
bém carreatas a favor do fim do
isolamento social. A crise desper-
ta essa ideia de separação – e

não só a da solidariedade?
A crise não inaugura personali-
dades oportunistas e dissimu-
ladas. A crise apenas as revela
e alicerça naquilo que já eram
capazes de ser e fazer, indepen-
dentemente de a crise existir.

lQue influência as redes sociais
têm nessa polarização?
Toda polarização inútil neste

instante dificulta e delonga al-
ternativas de solução e torna-
se aliada poderosa do vírus. As-
sim, urge avaliar se devemos
mesmo empregar nosso escas-
so tempo em fomentar um
viés deletério nas redes so-
ciais, que podem e são frequen-
temente colaborativas.

lComo essa crise pode afetar as
relações entre pessoas?
Estivemos e ainda estamos co-
locando à prova nossa sensibi-
lidade de convivência e tendo
de manejar com mais habilida-
de a idiossincrasia e os melin-
dres individuais. Em outras pa-
lavras, o necessário e compul-
sório isolamento social nos re-
meteu para um nicho familiar
que não permite tanto o famo-
so “vou sair para esfriar a cabe-
ça” ou o, agora arriscado, “não
estou nem aí com você”. En-
tendo que o núcleo familiar te-
rá um número maior de siner-
gias e fissuras. Se a segunda
vencer, o vírus carregará mais
esse dano.

lO que de positivo pode ser tira-
do do distanciamento social?
Alguma reclusão, sem que im-
plique em solidão, é bastante
benéfica, pois possibilita um
uso mais liberado e seletivo do
tempo disponível. Neste ins-
tante, o distanciamento servi-
rá também para múltiplas
ações que o cotidiano atribula-
do não permite com intensida-
de, desde convivências até
reorganizações dos espaços e
coisas. Além, claro, da dedica-
ção ao ócio recreativo.

lO senhor tem 66 anos, faz par-
te do grupo de risco para o vírus,
e dá aula, palestras, escreve li-
vros. Que cuidados tem tomado?
Desde o dia 16 de março estou
em reclusão organizada, tendo
saído de carro por algumas ho-
ras em dias distantes, sem con-
tato inseguro com outras pes-
soas, para duas tarefas impres-
cindíveis e salvaguardadas. Afi-
nal, embora me saiba mortal,
quero adiar essa ocasião no li-
mite máximo da minha sauda-
bilidade e consciência livre.

lO que a pandemia pode nos
ensinar sob a ótica da filosofia?
Que a nossa eventual e iludida
soberba como espécie encontra
mais guarida no campo do nos-
so desejo do que naquilo que a
natureza é capaz de erigir.

Subprocurador-eleitoral quer ação para cassar o registro do PT


PANDEMIA DO CORONAVÍRUS


Filósofo vê chance de


retomada da crença na


mídia durante pandemia
e sugere transparência e


didatismo aos políticos


Isolado, Bolsonaro parece
crer que narrativa pode
substituir realidade

lA ministra Rosa Weber, do Su-
premo Tribunal Federal, determi-
nou a manutenção dos prazos de
filiação partidária, domicílio elei-
toral e desincompatibilização pa-
ra as eleições 2020, que termina-
ram ontem. Ao negar liminar soli-

citada pelo PP, Rosa destacou
que prazos como o de desincom-
patibilização – afastamento do
servidor público para que possa
concorrer – “não são meras for-
malidades, pois visam assegurar
a prevalência da isonomia na dis-
puta eleitoral”. Para a ministra,
“não foi demonstrado que a situa-
ção causada pelo combate à pan-
demia da covid-19” afete os prin-
cípios democráticos e regras pre-
vistas na Constituição.

RICARDO CHICARELLI/ESTADÃO - 15/5/

Pós-crise. Cortella vê seletividade de fontes de informação como saldo ‘menos virulento’

‘Saldo pode


ser a volta da


credibilidade


da ciência’


Mario Sergio Cortella, filósofo e escritor


Manifestação se baseia


em requerimento de


deputado do PSL que


acusa partido de receber


dinheiro do exterior


Rosa Weber rejeita


pedido para alterar


prazos da eleição


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