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O ESTADO DE S. PAULO DOMINGO, 5 DE ABRIL DE 2020 Política A
J. R.
GUZZO
Q
ue tal parar de fingir só por
uns três ou quatro minu-
tos, digamos, o tempo sufi-
ciente para ler um artigo como es-
se, e voltar logo depois à hipocrisia
permanente em que vive a política
brasileira? Não vai machucar nin-
guém – e, ao mesmo tempo, talvez
ajude o leitor comum a se lembrar
que a sua única função nos cálcu-
los, nas estratégias e no palavrório
da vida pública nacional é fazer o
papel do palhaço.
Francamente: que outra utilidade
ele poderia ter, por exemplo, no últi-
mo grande evento criado no horário
nobre do noticiário político? Esse even-
to, que serviu de tema para análises
mais complicadas que um teorema de
Pascal sobre os conceitos de pressão e
de vazio, é a “aproximação”, ou “alian-
ça”, etc., entre o governador João Do-
ria e o ex-presidente Lula.
Tudo bem: cada um é livre, por lei,
para escolher suas ligações pessoais. É
também o responsável por elas. O que
não dá é para tratar essa coisa de Do-
ria-Lula como se o passado não existis-
se – e como se fosse a coisa mais natu-
ral do mundo ver os dois de mãos da-
das, em nome da súbita necessidade
que sentiram de salvar juntos o Brasil.
Não é natural. É apenas uma aberra-
ção – e aberrações, como ensina a expe-
riência da vida, raramente aparecem
para ajudar você.
Para resumir essa ópera, e o papel
que reservaram para o cidadão dentro
dela: até outro dia, Lula e toda a esquer-
da brasileira, com o apoio das classes
intelectuais e de nove entre dez jorna-
listas, tratavam a Doria com o respeito
que se dá a uma barata. Hoje, subita-
mente, ele é descrito por essa mesma
gente como um homem “de valor”. E
você? De você, esperam que acredite
no que estão dizendo.
Poucos políticos brasileiros foram
desprezados pela esquerda com tanta
náusea quanto João Doria. Não dá pa-
ra dizer que não foi bem assim, por-
que foi exatamente assim – está tudo
escrito, filmado e gravado, e não dá
mais para apagar.
O rancor explodiu quando ele derro-
tou Fernando Haddad, o candidato do
PT, nas eleições de 2016 para a Prefeitu-
ra de São Paulo. Chegou ao ponto máxi-
mo em 2018, quando, depois de aban-
donar seu cargo de prefeito e se ver
ameaçado de perder a eleição de gover-
nador para um ex-prefeito da simpáti-
ca cidade de São Vicente, se agarrou no
apoio a Jair Bolsonaro com um deses-
pero de quem é capaz de tudo. Criou o
truque do “BolsoDoria”. Chamou Lula
de ladrão abertamente. Prometeu um
“Padrão Rota” para o seu governo, no
melhor estilo “bandido bom é bandido
morto”. Graças a Bolsonaro, e só a ele,
ganhou a eleição.
Veio, então, o milagre. Assim que
não precisou mais de Bolsonaro, virou
casaca, assumiu o papel de “homem de
oposição” e começou a enxergar-se co-
mo a grande esperança do Brasil que
tem pavor da “reeleição”. Deixou, em
cinco minutos, de ser bombardeado
com Detefon pela mídia, virou um
sujeito sério (tipo Rodrigo Maia,
por aí) e agora, vejam só, está lado a
lado com Lula. “Virada histórica”,
chegaram a dizer, porque querem
“combater juntos o coronavírus”.
Como imaginam que alguém acredi-
te num negócio desses?
Doria acha que Lula é um cadáver
eleitoral; não será candidato em
2022 e, segundo seus sonhos, passa-
rá para ele os votos do PT. Lula, nas
suas próprias fantasias, acha que Do-
ria pode ser-lhe útil atraindo os vo-
tos da “direita” para o candidato do
PT. Uma coisa, nisso tudo, é certa:
quem mudou nessa história toda
não foi Bolsonaro. Está igualzinho
ao que era na sua campanha. É o mes-
mo sujeito, antes e depois do coro-
navírus. Tem, hoje, exatamente os
mesmos pecados que tinha ontem.
Se era o herói de Doria, por que não
é mais? E se Doria era o bandido de
Lula, e se Lula era bandido de Doria,
quem mudou o quê?
Só uma aberração
OCUPAÇÃO AFORAMENTO
419 244
Organizações
religiosas
● 663 imóveis da União estão nas mãos de organizações religiosas
PROPRIEDADES
FONTE: SECRETARIA DE COORDENAÇÃO E GOVERNANÇA DO PATRIMÔNIO DA UNIÃO (SPU) / MINISTÉRIO DA ECONOMIA INFOGRÁFICO/ESTADÃO
Arrecadação da Secretaria de
Patrimônio da União (SPU)
Soma das
fontes
EM MILHÕES DE REAIS
2015
Alienação
Foro
0,6% DO VALOR
DO IMÓVEL
AO ANO
Ocupação
2% DO VALOR
DO IMÓVEL
AO ANO
Laudêmio
5% DO VALOR
PAGO NAS
NEGOCIAÇÕES
IMOBILIÁRIAS
Outras
fontes
EVANGÉLICA
CATÓLICA
MAÇONARIA
OUTRAS
EVANGÉLICA
CATÓLICA
MAÇONARIA
OUTRAS
Por regime de uso Por conceito
do terreno
MARINHA
ACRESCIDO
DE MARINHA
NACIONAL
(INTERIOR)
OUTROS
247
222
111
83
407
205
21
30
175
60
14
5
914
41
129,
248
338
2016
620
39
144
206
85
2017
652
56
136
205
86
2018
795
111,
153
238
87
Lista das organizações com mais
de 10 imóveis usados
EM NÚMERO DE IMÓVEIS
Igreja Cristã Maranata
Irmandade da Santa Casa de
Misericórdia do Recife
Igreja de Jesus Cristo dos
Santos dos Últimos Dias
(Igreja Mórmon)
Congregação das Irmãs de
Nossa Senhora da Glória
Irmandade do Santíssimo
Sacramento da Candelária
Igreja Evangélica Assembleia
de Deus
Irmandade do Senhor Jesus dos
Passos e Imperial Hospital de
Caridade
Igreja Universal do
Reino de Deus
Igreja Evangélica Assembleia
de Deus em Pernambuco
Igreja do Evangelho
Quadrangular
União Sudeste Brasileira da
Igreja Adventista do Sétimo Dia
Congregação Cristã no Brasil
Congregação de Santa Doroteia
do Brasil
União Norte Brasileira da Igreja
Adventista do Sétimo Dia
40
37
26
26
25
24
23
22
17
14
12
12
12
10
663
254
Entidades
detentoras de
imóveis da união
Imóveis usados
pelas entidades
E-MAIL: [email protected]
J.R. GUZZO É JORNALISTA E ESCREVE
AOS DOMINGOS
Felipe Frazão / BRASÍLIA
A Igreja de Jesus Cristo dos
Santos dos Últimos Dias, po-
pularmente conhecida como
mórmon, paga uma taxa
anual de R$ 805 à União para
usar um apartamento de 273
metros quadrados na Penín-
sula, região com torres de al-
to padrão na Barra da Tijuca,
na zona oeste do Rio. Um imó-
vel de metragem similar no
mesmo local pode ser encon-
trado a partir de R$ 1,9 mi-
lhão ou alugado por, no míni-
mo, R$ 6 mil mensais.
Perto dali, no Jardim Oceâni-
co, a Primeira Igreja Batista da
Barra da Tijuca paga aos cofres
públicos uma taxa de R$ 1,4 mil
por ano pelo uso de um aparta-
mento em uma das áreas mais
valorizadas do Rio. Próxima à
praia, com amplo comércio e
acesso ao metrô, uma unidade
ali custa pelo menos R$ 1,5 mi-
lhão ou R$ 9 mil mensais.
Em franca expansão de suas
atividades, igrejas usam imó-
veis pertencentes à União para
atuar no País. Um levantamen-
to feito pelo Estado , a partir de
dados obtidos por meio da Lei
de Acesso à Informação e regis-
tros de cartórios, revela que
663 salas comerciais, aparta-
mentos, terrenos, galpões e re-
sidências em condomínios de
luxo estão ocupados por organi-
zações religiosas.
As entidades têm a posse da
maior parte dessas proprieda-
des federais. Pelas regras, os
ocupantes pagam apenas uma
taxa anual que incide sobre o
valor registrado do terreno e po-
de ser de 0,6% ou 2%. Parte des-
ses imóveis é usada como mora-
dia de dirigentes das igrejas.
O patrimônio da União é for-
mado por terrenos e imóveis re-
sidenciais e comerciais cons-
truídos em terras devolutas, in-
dígenas, áreas à beira-mar, mar-
gens de rios e também obtidos-
como pagamento de dívidas.
O governo do presidente Jair
Bolsonaro já autorizou a ocupa-
ção de três imóveis por igrejas
evangélicas: uma sala comer-
cial para a Igreja Universal do
Reino de Deus e uma sede para
a Assembleia de Deus Ministé-
rio Bethel, ambos em Vitória,
no Espírito Santo, além de uma
casa para a Igreja Apostólica
Restauração do Povo de Deus,
em Tramandaí, litoral do Rio
Grande do Sul. Todas a partir
de 2019.
Há também casos em que a
União permitiu, ao longo dos
anos, que imobiliárias fizessem
condomínios e loteamentos
em suas áreas. Os ocupantes
são beneficiados por adquiri-
rem a posse de casas por valores
abaixo dos cobrados normal-
mente pelo mercado ou por mo-
rarem em apartamentos pagan-
do apenas uma taxa irrisória.
Condomínio. Foi o caso de
Tamboré 2, um condomínio de
luxo em Barueri, na Grande São
Paulo. Ali, o apóstolo Valdemi-
ro Santiago, fundador da Igreja
Mundial do Poder de Deus, mo-
ra em uma casa de alto padrão,
erguida em terreno da União. A
Mundial paga R$ 5,8 mil por ano
ao governo. Em 2012, a igreja
comprou de um antigo ocupan-
te o direito de usufruir da resi-
dência de 925 metros quadra-
dos por R$ 1,3 milhão.
Em imobiliárias, casas no
mesmo condomínio são anun-
ciadas por valores entre R$ 6 mi-
lhões e R$ 35 milhões. O imóvel
possui acabamento externo em
mármore e jardim de palmeiras
exóticas. O Estado entrou em
contato e encaminhou questio-
namentos por escrito à Igreja
Mundial do Poder de Deus, mas
não obteve resposta.
A Igreja Universal do Reino
de Deus também usufrui de imó-
veis da União localizados em
condomínios de alto padrão na
Grande São Paulo, como o Alp-
haville 3 e o Tamboré 1, onde
moram empresários, artistas e
atletas famosos.
Nos últimos meses, a organi-
zação do bispo Edir Macedo co-
locou à venda por R$ 790 mil o
direito de uso de um lote de 532
metros quadrados na Alameda
Itanhaém, no Alphaville 3, um
dos mais tradicionais da área.
Há sete anos, a Igreja Universal
recebeu o terreno plano e com
poucas árvores como doação,
estimada em R$ 100 mil, embo-
ra o valor venal fosse de R$ 162
mil. O Estado apurou com cor-
retores da região que o valor de
mercado, na verdade, seria su-
perior a R$ 1 milhão.
Já no Tamboré 1, a igreja de
Edir Macedo anunciou um ter-
reno arborizado de 1,8 mil me-
tros quadrados, na esquina das
avenidas São Paulo e Limeira na
Fazenda, por R$ 919 mil. O direi-
to de uso desse imóvel foi com-
prado em 1997 pela simbólica
quantia de R$ 0,07, embora o
valor venal fosse, à época, de R$
45 mil. Os terrenos estão abaixo
do preço porque, segundo a
imobiliária responsável pela
venda, a Universal paga à vista
ou com parcelas altas.
À reportagem a Universal dis-
se que usa os imóveis citados pa-
ra evangelização e como apoio
ao trabalho da igreja.
Atualmente, as maiores de-
tentoras de imóveis pertencen-
tes à União são a Igreja Cristã
Maranata, com 40 proprieda-
des ao todo, e a Irmandade da
Santa Casa de Misericórdia do
Recife, ligada à Igreja Católica,
com 37 imóveis.
PANDEMIA DO CORONAVÍRUS
Se Doria era o bandido de
Lula, e se Lula era bandido de
Doria, quem mudou o quê?
Igrejas ocupam 663 imóveis da União
Entidades religiosas usam propriedades como moradia de dirigentes e pagam por elas, no máximo, 2% do valor do terreno por ano
Taxa cobrada
de ocupantes
registra queda
Cartéis, gangues e facções criminosas se adaptam ao mundo em pandemia. Pág. A8 }
NA WEB
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estadao.com.br/e/politica
6
FELIPE RAU/ESTADÃO
Tamboré. Imóvel da União usado pela Igreja Universal
BRASÍLIA
Com imóveis localizados em
áreas valorizadas, a Secretaria
de Patrimônio da União (S-
PU) registra uma redução de
13%, entre 2015 e 2018, na arre-
cadação de taxas pagas pelos
ocupantes das casas, salas co-
merciais e terrenos federais.
Nesse período, a secretaria
viu os recursos arrecadados
passarem de R$ 914 milhões
para R$ 795 milhões.
A maior queda na arrecada-
ção foi no recebimento do lau-
dêmio. Os pagamentos da ta-
xa que incide sobre a negocia-
ção de imóveis da União caí-
ram 74%, passando de R$ 338
milhões para R$ 87 milhões.
Leis aprovadas e sanciona-
das em 2015 aceleraram a que-
da. As alíquotas de ocupação
que podiam chegar a 5% foram
fixadas em 2%. Além disso, fo-
ram concedidas isenções a ór-
gãos públicos, carências e sus-
pensões de cobrança judiciais.
Famílias com renda de até
cinco salários mínimos que
usem o imóvel para moradia
têm isenção. A cobrança tam-
bém não é feita de entidades
beneficentes de assistência so-
cial e das que salvaguardam
bens culturais registrados co-
mo patrimônio histórico e ar-
tístico nacional.
Função. O Ministério da Eco-
nomia afirmou que destina os
imóveis da União com base na
solicitação de pessoas físicas ou
jurídicas interessadas, de for-
ma gratuita ou onerosa, depen-
dendo da função a ser dada –
uso para administração públi-
ca, cunho social ou fins lucrati-
vos. O ministério disse ainda
que não discrimina pedidos de
organizações religiosas e que,
atualmente, a secretaria analisa
o pleito pela isenção de taxas
patrimoniais.
A inadimplência dos ocupan-
tes de imóveis da União chega a
quase R$ 1 bilhão no País, con-
forme dados do Ministério da
Economia. Por enquanto, o go-
verno concentra esforços para
alienar imóveis vagos, mas tam-
bém analisa algumas propostas
de venda dos que estão ocupa-
dos, quando o morador manifes-
ta interesse em arrematá-lo –
ele tem preferência numa even-
tual licitação, mas precisa dar o
maior lance, sob o risco de ter
de ceder imóvel. / F.F.
i