O Estado de São Paulo (2020-04-05)

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A8 DOMINGO, 5 DE ABRIL DE 2020 O ESTADO DE S. PAULO


Internacional


LUISA GONZALEZ/REUTERS
Fernanda Simas
Cristiano Dias


Assim como deixou marcas
na economia legal, o coronaví-
rus afetou a criminalidade.
Mas como cartéis, máfias e
gangues não atuam de manei-
ra monolítica, o impacto va-
ria de acordo com o crime. Au-
toridades do mundo todo rela-
tam redução de atividades li-
gadas a narcotráfico e contra-
bando, mas alertam para o au-
mento de delitos que já eram
feitos em home office, como
fraudes de cartão de crédito,
golpes online e pedofilia.

“O crime organizado vai en-
contrar um jeito de se adaptar a
essa nova realidade, porque es-
sa é a natureza da atividade”, dis-
se ao Estado o professor Lean-
dro Piquet Carneiro, coordena-
dor do programa de pesquisa
em segurança e criminalidade
da Universidade de São Paulo
(USP). “Mas vai sofrer (o impac-
to) como todo mundo.”
Com mais de 1 milhão de in-
fectados e metade da humanida-
de em quarentena, o narcotráfi-
co foi um dos primeiros negó-
cios afetados. No início da pan-
demia, a medida mais comum
adotada por todos os governos,
além da quarentena, foi a sus-
pensão de viagens e o fechamen-
to de fronteiras.
“Agora, os carregamentos es-
tão mais fáceis de serem monito-
rados. Não há carros nas ruas,
aviões não decolam e navios
não zarpam. Qualquer movi-
mento suspeito é detectado fa-
cilmente”, afirmou Frédéric
Massé, um dos diretores da Red
Coral, que monitora o crime na
América Latina.
Outro problema é o papel da
China na cadeia de suprimentos
de muitas organizações crimi-
nosas, especialmente na Améri-
ca Latina. Os chineses forne-
cem de tudo, desde bugigangas
e produtos falsificados até pre-
cursores químicos para a fabri-
cação de drogas. Com a pande-
mia, as fábricas foram fechadas,
cortando remessas e criando
um gargalo na cadeia produtiva.
A gangue Unión Tepito, que
controla a venda de produtos fal-
sificados na Cidade do México,
não consegue mais viajar à Chi-
na para acertar a compra de mer-
cadorias em razão das restri-
ções de viagens. Em fevereiro, a
MVS Noticias, rádio da região
metropolitana da capital mexi-


cana, relatou que camelôs e co-
merciantes já não estão pagan-
do mais extorsões ao grupo.
Já o problema do cartel Jalis-
co Nueva Generación é a falta
de precursores químicos para fa-
bricar o fentanil, opioide que faz
sucesso nos EUA. Há relatos de
funcionários do Ministério da
Justiça do México de que a pro-
dução foi paralisada desde que a
China cortou as exportações.
O isolamento social também
tem sido um desastre para gan-
gues especializadas em assal-
tos, furtos e roubos. Nos EUA,
na semana entre 15 e 21 de mar-
ço, houve queda de 42% dos cri-
mes em San Francisco, 24% em

Nova York, 22% em Detroit,
19% em Los Angeles e 13% em
Chicago. John MacDonald, cri-
minologista da Universidade da
Pensilvânia, diz que a razão é
simples: as pessoas estão em ca-
sa. “Não há vítimas andando
nas ruas”, disse MacDonald ao
Marshall Project , grupo de jorna-
lismo investigativo.
Em muitos lugares, ruas va-
zias significam prejuízos para la-
drões de carro. Na semana pas-
sada, a Iniciativa Global da
ONU contra o Crime Organiza-
do Transnacional (GI-TOC) pu-
blicou o relatório Crime e Contá-
gio , em que relata o caso da
Bósnia, onde o roubo de veícu-
los sempre foi um problema
crônico. “Os bandidos estão re-
clamando que é mais difícil rou-
bar carros quando as ruas estão
vazias”, diz o texto. Pela mesma
razão, a rede de informantes da
GI-TOC registrou uma redução
de homicídios e roubos na Sér-
via e em Montenegro.
No Reino Unido, a desacelera-
ção do crime chega a 20% em

algumas regiões, segundo o jor-
nal The Guardian. Andy Cooke,
que preside o Conselho Nacio-
nal de Chefes de Polícia, es-
pécie de sindicato de policiais
britânicos, disse que o fecha-
mento de bares e boates dizi-
mou os pequenos delitos. “Há
menos violência e brigas”, afir-
mou. Assaltos a lojas de conve-
niência, feitos por jovens para
financiar algum vício, desapare-
ceram. “Todos os estabeleci-
mentos estão fechados”, disse.
Com as pessoas confinadas
no sofá, os crimes contra pro-
priedades despencaram, segun-
do Meagan Cahill, criminologis-
ta da Rand Corporation. “Assal-
tantes preferem casas vazias. É
uma questão de oportunidade,
que não existe mais na quarente-
na”, disse Cahill.
Mas, se o confinamento redu-
ziu os delitos que exigem intera-
ção humana, aumentou a opor-
tunidade para crimes que já
eram cometidos à distância pela
internet. Nos EUA, o FBI disse
ter identificado duas categorias

de fraudes online ligadas à co-
vid-19.
“Uma é a solicitação de di-
nheiro para kits de teste e vaci-
nas”, disse o agente Rich Ja-
cobs, encarregado de crimes ci-
bernéticos, à revista Forbes. “A
outra são ataques tradicionais,
envolvendo phishing e sites fal-
sos, projetados para instalar
malware ou para fazer com que
as pessoas revelem senhas ban-
cárias.”
Na semana passada, a Euro-
pol publicou um relatório intitu-
lado Lucro na Pandemia , que
alerta para a reciclagem de ve-

lhos golpes online usando o co-
ronavírus, explorando a ansie-
dade e o fato de tanta gente es-
tar trabalhando de casa ao mes-
mo tempo. “O crime organiza-
do tem usado o medo e o fato de
as pessoas estarem em casa, bus-
cando informações o tempo to-
do”, afirmou Catherine de Bol-
le, diretora da Europol.
O texto também aponta a fal-
sificação como um problema
agravado pela epidemia. Os es-
quemas mais comuns, segundo
a Europol, são a venda de testes
fraudulentos de coronavírus,
máscaras e remédios falsos,
além de links que prometem a
cura da doença.
Com as escolas fechadas e as
crianças online por mais tempo,
a Europol também observou
um aumento de casos de pedofi-
lia. “Recebemos informações
de vários países do bloco de que
há um crescimento da atividade
de pedófilos, durante a pande-
mia, que procuram novos mate-
riais de exploração na internet”,
disse De Bolle.

Quarentena em razão do novo coronavírus tem dificultado o narcotráfico, e mesmo a produção de drogas, além da atuação de


ladrões, mas as autoridades mundiais alertam para o aumento de delitos como fraudes de cartão de crédito, golpes online e pedofilia


Desde o início da pandemia, os
ciberataques têm sido comuns
na Itália, um dos países mais
infectados pelo coronavírus.
Em meio à corrida pelo bônus
de ¤ 600, que sobrecarregou o
site do instituto italiano de pre-
vidência, hackers fizeram três
assaltos em um dia, colocando
o endereço fora de serviço. O
instituto recebeu em um único
dia 440 mil pedidos de pagamen-
to para trabalhadores autôno-
mos do bônus concedido pelo


governo em razão da covid-19.
De acordo com o governo ita-
liano, “os hackers não rouba-
ram nada, apenas queriam tes-
tar o site e criar confusão”. Na
França, hospitais, farmácias e
asilos de idosos também passa-
ram a ser vítimas de golpes. De
acordo com o jornal Le Monde ,
os “bandidos se adaptaram rapi-
damente à covid-19”, mudando
as fraudes que antes se davam
durante a transferência de di-
nheiro para temas médicos.
O golpe é o mesmo. O bandi-
do se passa por um fornecedor,
que alega ter recebido máscaras
de proteção ou frascos de álcool
em gel, e incentiva a vítima –
muitas vezes os próprios hospi-
tais – a fazer o pedido antes que
o estoque acabe. Em seguida,

eles recebem os dados bancá-
rios e o dinheiro que, uma vez
depositado, passa a circular em
dezenas de contas no exterior.
Giuseppe Governale, chefe
da Direção Investigativa Anti-
máfia (DIA), disse à France Pres-
se que os mafiosos sabem trans-

formar ameaças em oportunida-
des, principalmente quando o
crime é agiotagem. “A crise pe-
gou a máfia no contrapé. Mas
ela está se adaptando”, afirmou.
Segundo Governale, a máfia
pensa no longo prazo, quando a
economia se recuperar. “Have-

rá muito dinheiro circulando”,
disse. O autor Roberto Saviano
afirmou algo parecido em entre-
vista esta semana ao jornal La
Repubblica. “Basta olhar para o
portfólio das máfias, para ver
quanto elas podem ganhar com
essa pandemia”, disse.

“Minha preocupação é com a
agiotagem”, afirmou Anna Ser-
gi, criminologista da Universi-
dade de Essex. “Em breve, tere-
mos empresários angustiados,
sem conseguir pagar funcioná-
rios. Por isso, será muito mais
fácil conversar com um agiota.”
“Quando a economia está sus-
pensa, o maior perigo é que as
empresas em crise não consi-
gam sair dela e as máfias come-
cem a pescar nesse aquário”,
disse o procurador italiano Fe-
derico Cafiero de Raho.
Mas nem tudo é lucro em tem-
pos de pandemia. A N’dranghe-
ta, máfia da Calábria, que movi-
menta drogas e contrabando
em embarcações de carga, vem
encontrando dificuldades para
movimentar a mercadoria, se-
gundo Sergi. “Embora as remes-
sas tenham continuado, nin-
guém sabe o que vai acontecer
quando os produtos chegarem à
Itália”, disse. “Certos carrega-
mentos estão a caminho, mas
quem vai buscá-los?” / F.S. e C.D.

PANDEMIA DO CORONAVÍRUS


l Adaptação

l Crime e quarentena

l Em baixa

Máfia italiana obtém lucro com


oportunidades criadas pelo vírus


Cientista italiano diz que todos devem se preparar para próxima pandemia. Pág. A

“A crise pegou a máfia no
contrapé. Mas ela está se
adaptando. A máfia pensa
no longo prazo, quando a
economia se recuperar.
Haverá muito dinheiro
circulando”
Giuseppe Governale
CHEFE DA DIREÇÃO INVESTIGATIVA
ANTIMÁFIA DA ITÁLIA

Cartéis, gangues e facções criminosas


se adaptam ao mundo em pandemia


“O crime organizado usa o
medo das pessoas e o fato
de elas estarem em casa,
buscando informações o
tempo todo”
Catherine de Bolle
DIRETORA EXECUTIVA DA EUROPOL

Nova realidade. Fila de supermercado na Colômbia; confinamento reduz delitos que exigem interação, mas cria oportunidades para crimes à distância

42%
foi a queda da criminalidade em
San Francisco entre 15 e 21 de
março. Os índices caíram em
outras cidades no mesmo
período: 24% em Nova York,
22% em Detroit, 19% em
Los Angeles e 13% em Chicago

CLAUDIO GIOVANNINI/EPA/EFE

Mafiosos devem


se aproveitar de


empresários angustiados
por não ter como pagar


seus funcionários


Carregamento. Aeroporto em Pisa recebe mercadorias

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