LIVRO DIGITAL ENCONTRO SHAKESPEARE 2.1 - 2023

(Shakespeare 2.1EU1AMn) #1

SEU CORAÇÃO SUBJUGADO: O DESEJO DE DESDÊMONA NA TRAGÉDIA FEMININA EM


OTELO


Laura Ribeiro Araújo^1

Resumo: A tragédia feminina em Otelo, de William Shakespeare, desponta logo no primeiro
ato e encontra seu clímax no assassinato de duas, dentre três, personagens femininas
nomeadas na peça. Desdêmona, ao colocar em prática o plano de casar-se com o mouro,
desafia estruturas patriarcais da Veneza do século XVI e expõe seu desejo não só por Otelo,
mas também pela possibilidade de experienciar a autonomia narrada por seu marido. Sua
construção inicial como mulher assertiva é explorada, então, por Iago, principal antagonista
na peça, quem usa da livre expressão de Desdêmona para subverter sua representação e
convencer o mouro da infidelidade de sua esposa. A partir disso, pretendo, com este trabalho,
analisar como a expressão do desejo de Desdêmona coloca a tragédia em movimento e
desafia a hierarquia de gênero que marca a trama de Otelo. Por meio de suas linhas, rimas e
silêncios traçarei um paralelo de como o desejo, conceituado a partir da leitura de Jacques
Lacan, se manifesta na linguagem de Desdêmona e garante ao texto dramático o movimento
necessário para o encerramento da peça. A partir dessa leitura, convido, enfim, a reflexão
acerca da agência feminina a partir da livre expressão do desejo e da busca por autonomia em
uma sociedade ainda fortemente marcada por estruturas de opressão de gênero.


Introdução


Apesar de vítima de menos contradições que nossa Capitu, a leitura de Desdêmona
encontra também um legado crítico por vezes ambíguo: ora canonizada no eco das falas de
Brabâncio como “uma moça tão linda, terna e feliz” (1.2.65), de “alma tão quieta e calma que
até em seus gestos / se via seu pudor.” (1.3.97-98), ora posta como a meretriz pintada por
Iago ou a “puta” descrita pelo crítico polônes Jan Kott, em “Shakespeare nosso
contemporâneo” (2003. p. 118). Como se fascinado pela tentação ofídica de Iago, Kott erra a
mão ao evocar a lascívia in potentia que habita a personagem e contamina os homens ao seu
redor — enganou seu pai, enganará seu marido.
Seu emolduramento beatificado, passivo diante do próprio destino, também chama a
atenção e parece ignorar não apenas a Desdêmona audaciosa que primeiro encontramos em


1
Mestranda em Estudos Literários pela Universidade Federal de Minas Gerais (PÓS-LIT/UFMG). Bolsista
FAPEMIG. E-mail: [email protected]

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