Veneza, como também aquela que, no leito de morte, implora pela vida e assume para si a
responsabilidade pelo próprio estrangulamento. Como sugere A.C. Bradley (1992), talvez a
canção do salgueiro ainda não houvesse deixado a mente de Desdemona: “ Não o acuse
ninguém / Aprovo-lhe o escárnio —” (4.3.61-62) os versos da canção paralelizam sua última
resposta quando Emília lhe questiona sobre o culpado pelo seu estrangulamento, “Ninguém.
Eu mesma. Adeus.” (5.2. 127), sem empalidecer, porém, o esforço da defesa que, rejeitando
o silêncio violento que fora forçado em sua garganta, só pôde fazer entre suspiros: “Morro
uma morte sem culpa.” (5.2.125).
A análise do desejo de Desdêmona, porém, demanda que eu antes explore o conceito
que aqui será trabalhado. Para tal, tomo a liberdade de recorrer à abordagem do desejo
proposta por Jacques Lacan que lê o desejo como uma força insaciável que nos propele
adiante na busca incessante por uma satisfação impossível. Para Lacan, quando desejamos
algo, desejamos a fantasia que nós mesmos construímos ao redor do objeto de desejo, o qual,
além de ser substituível, tem as características que parecem atrativas ao sujeito que o deseja
amplificadas pela presença do objeto a^2. Esse objeto a , proposto por Lacan, não é um objeto
real, como aquilo ao qual dirigimos nossos esforços de desejo, mas é entendido como aquilo
que causa em nós o desejo, atuando justamente a partir do vazio deixado com nossa entrada
no universo simbólico da linguagem.
Lacan (1985) sintetiza esse processo em seu seminário XI, quando diz: “Eu te amo, mas,
porque inexplicavelmente amo em ti algo mais do que tu — o objeto a minúsculo, eu te mutilo”
(p. 249). Ao desejarmos algo, desejamos não o objeto em si, mas algo nele que é amplificado
pela existência do objeto a , algo que amplificamos também na fantasia que criamos ao redor
desse objeto de desejo. Ou seja, se supormos o desejo de Desdêmona por Otelo, é possível
dizer que não é Otelo, em si, que Desdêmona deseja, mas algo específico nele que é destacado
por seu objeto a. Meu argumento nesse trabalho é de que o desejo de Desdêmona é
justamente evocado pelo senso de autonomia que ela parece buscar em todas as suas
decisões: desde o momento em que deixa sua casa, até o momento de seu último suspiro:
“Ninguém. Eu mesma. Adeus.” (5.2. 127).
2
Bruce Fink (19 98 ) define o objeto a como o “complemento do sujeito, um parceiro fantasmático que sempre
desperta o desejo do sujeito” (p. 84), e completa: “O objeto a como causa de desejo é aquilo que evoca o
desejo: é o responsável pelo advento do desejo, pela forma específica assumida pelo desejo em questão e por
sua intensidade.” (p. 116).