O desejo de Desdêmona
Voltemos, então, ao primeiro ato da peça. Desdêmona tem sua entrada antecedida
por uma série de imagens: na voz de Iago, faz-se uma ovelha branca montada ora por um
carneiro preto (I.I.87-88), ora por um cavalo da Barbária (1.1.111). Já na voz de Brabâncio, seu
pai, Desdêmona, é dita “de alma tão quieta e calma” (1.2. 98 ) que, no envolvimento com o
Mouro, só poderia ter sido vítima das magias e “poções que abatem o juízo” (1.2.66). Nessa
listagem, a figura de Desdêmona emerge na passividade: incapaz de tomar decisões por conta
própria, ela é aquela que foi coberta pelo corpo do estrangeiro, aquela que foi vítima, aquela
que foi enfeitiçada. Em sua entrada, Desdêmona confirma sua união ao Mouro, e é relevante
notarmos, já conscientes da tragédia que encerra essa peça, que sua primeira oportunidade
de fala é sugerida justamente por aquele que, ao final, a silencia com um estrangulamento.
A figura de passividade que vinha sendo pintada começa a se desfazer quando Otelo
se propõe a narrar o processo de conquista — processo sobre o qual ambos compartilham a
responsabilidade, ele reforça. Desdêmona teria se apaixonado por suas aventuras, bebendo-
as com “ouvidos sedentos” (1.3.150). Nesse ponto voltamos ao conceito do desejo que se fixa
não no objeto de desejo em si, mas em algo que é destacado pela presença do objeto a.
Desdêmona, ansiosa por ouvir as histórias narradas por Otelo, “Não queria mais ter / Ouvido
aquilo, mas só que os céus lhe tivessem / feito um homem assim.” (1.3.162-164). A leitura,
ambígua tanto na versão traduzida quanto no original em inglês, permite visualizarmos uma
Desdêmona que, se deseja ter em sua vida um homem com a experiência de Otelo, deseja
também as aventuras que sua condição de mulher não a permitiria experienciar. O desejo de
Desdêmona parece aqui se fixar na autonomia da qual não goza e, ao lado de Otelo, poderia
indiretamente gozar.
A possibilidade de concretizar as fantasias de uma vida de aventuras até então
sufocada tanto pelo ambiente doméstico, quanto pela estrutura patriarcal que a rodeia,
aparece quando, ao descobrir que o marido deveria partir em viagem para o Chipre,
Desdêmona pede ao duque de Verona pela oportunidade de seguir ao lado de Otelo rumo às
terras estrangeiras. Sua imediatez em propor a drástica mudança de cenário coloca em
paralelo a dedicação ao marido e o desejo de explorar não só aquilo que se estende para além
dos muros de Veneza, mas, principalmente, aquilo que habita sua mente a partir da fala do
Mouro:
shakespeare 2.1eu1amn
(Shakespeare 2.1EU1AMn)
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