LIVRO DIGITAL ENCONTRO SHAKESPEARE 2.1 - 2023

(Shakespeare 2.1EU1AMn) #1
De fugas por um fio por brechas despencando,
De como me prendeu o insolente inimigo
E vendeu-me como escravo; de meu resgate
De minha faina na jornada atribulada
De cavernas vastas e desertos vagos
De agras penhas, pedras, cumes que arranham os céus,
De tudo falei. Eis a história. Falei.
Dos canibais, os Antropófagos, que comem
uns aos outros, de homens cujas cabeças crescem
Por debaixo dos ombros. (1.3.1 37 - 146 )

Diante de uma descrição floreada de excessiva exoticidade, não é surpresa que Desdêmona
veja inflamado o desejo de explorar esse universo de (im)possibilidades tão alheio ao espaço
circunscrito de sua domesticidade. Ronald J. Boling (2008) argumenta que a personagem
abandona, nesse momento, os privilégios da vida em Veneza para banhar-se na “aura de
heroicidade” do marido enquanto testemunha o nascimento de Otelo como uma lenda (p. 2),
mas essa leitura parece ignorar que, ao embarcar para Chipre, o movimento que Desdêmona
faz é justamente o de rejeitar essa experiencia indireta das aventuras narradas pelo marido.
Desdêmona parte para percorrer um caminho que não se sobrepõe e, muito menos, submete-
se ao do marido.
Uma vez no Chipre, o cenário urbano dá espaço para que a parafernália militar se
encaixe sobre o palco. Desdêmona já não atua mais sob a proteção de sua família ou na
proximidade de amigos. Sua companheira, Emília, age em boa parte em favor do marido, Iago,
quem joga contra Desdêmona com fins de atingir Otelo. Cássio, que acompanhou os recém-
casados no processo de corte, apesar de bem intencionado, participa, sem saber, do teatro
trágico que Iago organiza. Otelo, seu marido, faz-se cada vez mais distante, envenenado pelo
ciúme. É na preparação desse palco que Desdêmona, cada vez mais isolada, toma para si o
papel de reconciliadora:


Fica certo: se juro
Amizade, cumpro até a derradeira cláusula
Otelo não vai ter paz, vou lhe pôr numa doma,
Falar até que enjoe, e sua cama vai
Virar escola, sua mesa, um confessionário,
E o que quer que ele faça eu vou associar
Co’a demanda de Cássio. Assim, alegra-te, Cássio,
Pois o teu intercessor prefere morrer
A abandonar a tua causa. (3.3.20-28)
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