LIVRO DIGITAL ENCONTRO SHAKESPEARE 2.1 - 2023

(Shakespeare 2.1EU1AMn) #1

Ignorante de atuar conforme o roteiro preparado por Iago, Desdêmona dá provas de sua
fidelidade ao jurar ajudar Cássio a reatar com Otelo, e pressagia o destino que já começa a lhe
emaranhar: prefere morrer a abandonar aquilo que jurou realizar.
A partir desse ponto temos uma Desdêmona dedicada a também agir sobre o mundo
que a rodeia, algo que inevitavelmente ecoa seu desejo de experimentar das aventuras
romantizadas pelo marido. Seu desejo se manifesta em cadeia, revelando certa
fundamentação em comum: o objeto de desejo é mutável, mas por trás dele há sempre a
motivação trazida pelo objeto a. Nessa lógica, há, em Desdêmona, um histórico de desejos
que continuamente apontam pela ânsia de autonomia. Se, primeiro, ela desejou ser um
homem para poder viver as aventuras narradas por Otelo, não é estranho notar a
convergência desse desejo para a viagem, naturalmente perigosa, ao Chipre. Do mesmo modo,
o encadeamento desse desejo nos leva, agora, à vontade de agir sobre o mundo e transformá-
lo mesmo que diante de uma série de perigos: Desdêmona não só desafia a autoridade do
marido em uma sociedade profundamente patriarcal, como também desafia as expectativas
do ideal doméstico posto sobre as mulheres e se envolve no universo masculinizado do
militarismo a fim de cumprir com o primeiro, e último, trabalho hercúleo que toma para si.
Para mais, Desdêmona consistentemente age, como se banhando na própria “aura
heroica”, em favor daqueles que, de algum modo, estão em desvantagem. Kezia Sproat (1985)
reforça esse raciocínio ao destacar como Otelo aponta a “pena, muita pena.” (1.3.162) sentida
por Desdêmona enquanto ele lhe narra as durezas de sua jornada (p.46). Já diante do senado,
ela protege a honra do marido (estrangeiro e mouro) ao elevar suas qualidades morais e tomar
parte da responsabilidade do cortejo. No Chipre, Desdêmona questiona as ofensas que Iago
lança a Emília e lhe chama calunioso (2.1.1 13 ), saindo em defesa da esposa que aceita
silenciosa as injúrias do marido. Já com relação a Cássio, Desdêmona ouve seu lado da história
e se apieda ao se dar conta da injustiça sofrida por alguém tão dedicado a Otelo — um óbvio
paralelo à sua própria condição.


Aquela rameira ardilosa de Veneza


As ofensas verbais que Otelo despeja sobre Desdêmona no quarto ato da peça decerto
afetam seu espírito, e é justamente nessa trágica segunda metade que críticos direcionam

Free download pdf