LIVRO DIGITAL ENCONTRO SHAKESPEARE 2.1 - 2023

(Shakespeare 2.1EU1AMn) #1

seus esforços quando optam por categorizar Desdêmona como mais um produto de
submissão à ordem patriarcal. Na contramão, leituras que destacam justamente a
manutenção de seu espírito autônomo nessa segunda parte não são raras (NEELY, 1985;
BARTELS, 1996; PETCHER, 1999) e apontam para o esforço contínuo da personagem em
rebater, questionar e lutar contra as injúrias que lhe são falsamente atribuídas. O tapa
desferido diante de Ludovico na primeira cena do quarto ato, por exemplo, arrancam de
Desdêmona uma primeira defesa que também surge como acusação, “Eu não merecia isso”
(4.1.148). Em todas as cenas subsequentes Desdêmona atesta, verbalmente, sua integridade
moral, incapaz de aceitar os adjetivos derrogatórios que Otelo insiste em lhe atribuir. Ao
assentir que “Faz sentido, faz, que eu seja tratada assim.” (4.2.109) Desdêmona está
consciente do modo como seu “falar com franqueza” (3.4.131), ou, no inglês, seu “ free
speech
”, invoca o desagrado do marido. Apesar disso, e consistente com seu desejo por
autonomia antes registrado, ela não se cala nem mesmo no pós-morte.
Antes de proceder à cena final, porém, é fundamental que o momento da canção do
salgueiro seja aqui considerado, uma vez que remete diretamente às últimas palavras
proferidas por Desdêmona. Desde sua chegada ao Chipre, a primeira oportunidade que a
personagem tem de se fechar em um universo feminino deslocado do militarismo reinante é
ao final do quarto ato. Nessa cena, a Desdêmona se recolhe com Emília e, enquanto troca para
as vestes de dormir, evoca um passado que pressagia seu futuro:


Minha mãe teve uma aia que se chamava Bárbara,
Que amou muito um homem — mas ele enlouqueceu
E a deixou. E havia essa canção, do Salgueiro,
Coisa antiga, mas que expressou bem sua desgraça.
Ela morreu cantando. Essa noite, a canção
Não me sai da mente. (4.3.25-30)

A canção, que traz à mente imagens de melancolia e corações partidos, traz em seu penúltimo
parágrafo o par de versos que logo se apressa a corrigir: “Não o acuse ninguém / Aprovo-lhe
o escárnio — / (fala) Não, não é isso.” (4.3.61- 63 ). John P. Cutts (195 7 ) apresenta-nos, em seu
artigo “A Reconsideration of the "’Willow Song ’”, uma versão corrente da Canção do Salgueiro
à época da circulação de Otelo nos teatros Elisabetanos. Para além da supressão de alguns
versos e da mudança do gênero da personagem que canta, os versos originais provavelmente
entoavam uma ideia que Desdêmona, ao apropriar-se da letra como seu espaço de confissão,

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