LIVRO DIGITAL ENCONTRO SHAKESPEARE 2.1 - 2023

(Shakespeare 2.1EU1AMn) #1

corrompe com o entrelaçamento do destino de Bárbara com o seu: os dois últimos versos, “Se
vais buscar mais damas / Mais homens hei de ver”^3 (4.3.69-70), não estão inclusos na canção
original (BRENNECKE, 1953) e substituem dois versos que compõe a última estrofe: “ Take this
for my farewell and latest adieu / Write this on my tomb, that in love I was true
.” (CUTTS, 195 7 ,
p.16). Apesar de já consciente do destino que se aproxima, a personagem ainda se recusa a
professar o adeus conformado que encerra a canção original. Em vez disso, Desdêmona,
compondo os versos da própria canção, rejeita viver mais uma vez via narrativa de outrem,
como fizera ao escolher embarcar para o Chipre, e parece evocar em tom de desafio as faltas
que Otelo injustamente vinha lhe lançando.
Gillian Knoll (2020), em sua análise sobre a representação do desejo nas peças de
Shakespeare, traz uma relevante adição para a discussão da natureza do desejo de
Desdêmona, principalmente quando pensado em contraste com o desejo de Otelo. Para a
autora, Otelo repetidamente manifesta seu desejo por meio de metáforas de paralisia,
enquanto Desdêmona, como vimos ao longo deste trabalho, frequentemente expressa anseio
pela mudança, pelo movimento. Exemplo disso está no segundo ato, quando Otelo
desembarca no Chipre e encontra Desdêmona: “...Se a morte viesse agora, / Seria a máxima
alegria, pois eu temo / Que o regalo na minh’alma é tão absoluto / Que outro conforto igual
não vai se suceder / No incógnito futuro.” (2.1.186-190). Essa busca por estabilidade na
expressão do desejo volta a aparecer em seu discurso ao longo da peça e conversa com sua
decisão de “monumentalizar” Desdêmona via estrangulamento. Silenciar Desdêmona significa
também impedir que ela continue agindo e, nessa paralisia forçada, garantir a estabilidade
que Otelo vislumbra como solução para a agência da esposa.
Em seu último ato, porém, Desdêmona dá ainda sinais de lutar pela própria
sobrevivência. Quando enfim consciente da intenção homicida do marido, ela suplica pela
própria vida e tenta argumentar mesmo diante da clara desvantagem física que leva nesse
embate, dizendo: “Senhor, me expulse, deporte, mas não me mate!” (5.2.79) e “Mate-me
amanhã, poupe minha vida esta noite.” (5.2.81). Nas falas de Otelo encontramos ainda traços
de sua impassividade: “Não, se resistires...!” (5.2.81) e “Não está morta? Não ainda?” (5.2.87).


3
No original: “ If I court more women, you’ll couch with more men.—” (4.3.61). A tradução utilizada transforma o
verso final para uma enunciação do eu lírico feminino que entoa a canção. No inglês, temos os seguintes versos:
I called my love false love, but what said he then? / (...) / If I court more women, you’ll couch with more man.—”
(4.3.59;61). Aqui, a última linha é apresentada como uma fala do personagem masculino endereçado pelo eu
lírico feminino na canção.

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