LIVRO DIGITAL ENCONTRO SHAKESPEARE 2.1 - 2023

(Shakespeare 2.1EU1AMn) #1

Na versão traduzida que aqui utilizo essas falas são ainda entrelaçadas por rubricas que
narram o combate: “( agarrando-o, suplicando )”, “( ela luta com ele )”, “( Ele a sufoca
novamente
)” (5.2.79;81;91) aparecem nos intervalos do conflito e conferem a Desdêmona
uma agência que nem sempre se escancara no texto da peça.
É após essa repetida tentativa de silenciamento da esposa (que o incomodara com seu
free speech ”, ela nota anteriormente ) que Desdêmona ainda encontra forças para soprar a
Emília: “Morta, injustamente, falsamente!” (5.2.1 1 9). Desdêmona, consciente da acusação de
trair Otelo com Cássio, não aquiesce ao pecado que lhe foi engendrado e quebra a imposição
do silêncio para atestar por si mesma, encadeando ainda o desejo por autonomia e decidida
a impedir que o próprio fim surja por meio da experiência do outro. O diálogo final traz ainda
mais um traço dessa ânsia por autonomia:


DESDÊMONA: Morro uma morte sem culpa.
EMÍLIA Quem foi que fez isso?
DESDÊMONA Ninguém. Eu mesma. Adeus.
Vai e me recomenda ao meu gentil esposo.
Oh, adeus, adeus! Morre (5.2.125-129)

Suas últimas palavras trazem uma miríade de possíveis leituras que só faz enriquecer o
repertório daquilo que Desdêmona ainda tinha a dizer.
Tomando como fio condutor o desejo que converge na ânsia por autonomia, pelo
menos duas possíveis leituras emanam dos momentos finais de Desdêmona: Primeiro, ao
assumir a própria morte como sua responsabilidade, a personagem, sem imputar-se qualquer
culpa ou falta, traz atenção para as decisões que tomou no curso de sua própria história.
Desdêmona rejeita a possibilidade de que outro, se não ela mesma, possa escrever o seu fim
e desafia a morte eminente para dizer que apenas ela seria autora de seu próprio desfecho.
Uma segunda leitura nos lembra dos versos da canção que, mesmo nos momentos
finais, ainda não lhe escapara a mente: “Ninguém. Eu mesma” ecoa o verso que Desdêmona
admite errar na canção do salgueiro, “Não o acuse ninguém / Aprovo-lhe o escárnio”, e
momentaneamente a transporta para a posição ocupada por Bárbara, quem, casada com um
louco, morre em desgraça com a canção ainda em seus lábios. Nessa lógica, Desdêmona, ao
fazer-se Bárbara, faz Otelo também o louco, e deixa sobre seus ombros a responsabilidade
pela tragédia que encerra sua história prematuramente.

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