LIVRO DIGITAL ENCONTRO SHAKESPEARE 2.1 - 2023

(Shakespeare 2.1EU1AMn) #1

RELAÇÕES DE GÊNERO EM LUCRÉCIA


Leonardo Afonso^1

Projetar as categorias de análise contemporâneas sobre o passado envolve sempre
o risco de incorrer em anacronismos. Quando o assunto é patriarcado e relações de
gênero, mesmo tendo em mente que a opressão da mulher foi por séculos ou milênios
naturalizada, não se pode perder de vista que ela nunca foi natural, e nunca deixou de
ser questionada. De modo que não há impedimento, guardada alguma prudência, a
analisar tais questões em períodos históricos anteriores ou, como será nosso caso, em
uma obra literária de mais de quatro séculos atrás.


Trata-se do poema narrativo Lucrécia^2 (1594) de William Shakespeare (1564-1616).
O autor, consagrado pela dramaturgia e – secundariamente – pelos sonetos, produziu
dois épicos menores – outro nome para o formato – durante um fechamento prolongado
dos teatros, cedo em sua carreira, sendo Venus e Adônis (1593) o antecessor de Lucrécia.
As duas obras (e apenas estas) foram publicados por iniciativa de Shakespeare,
dedicadas a um patrono, o conde de Southampton. De fato, Vênus foi o primeiro sucesso
literário de Shakespeare, o maior até Hamlet (1600-1). Fazia parte de uma voga de epílios,
poemas eróticos, e a essa característica o autor ficou associado: “no século dezessete,
sua identidade autoral estava em grande medida atada ao uso de linguagem sexual e ao
tratamento de temas eróticos.” (WILLIAMS, 1997, p. 1).
Na dedicatória de Vênus , Shakespeare promete a Southampton um “labor mais
grave”, que viria a ser o sombrio, solene e violento Lucrécia. O poeta se valeu do mito
republicano de Roma, segundo o qual a expulsão dos reis etruscos, por volta de 500 a.C.,
teria sido motivada pelo estupro da dama Lucrécia pelo príncipe Sextus Tarquinius. Suas
fontes foram Ab Urbe Condita de Tito Lívio (59 a.C.–17 d.C.), um historiador (via
tradução), e Fastos de Ovídio (43 a.C.-18 d.C.), um poeta; e a versão de Geoffrey Chaucer
(ca. 1340-1400) em The Legend of the Good Women também o influenciou. O gênero de
Lucrécia é o lamento, que tem sua origem na coletânea The Mirror for Magistrates
(várias edições a partir de 1559), em que figuras caídas lamentavam sua sorte, e cujo
intuito era didático. Uma característica que Lucrécia compartilha com Mirror é a rima
real, a estrofe de sete versos rimados no padrão ABABBCC. O poema de Shakespeare
conta com 265 dessas estrofes, totalizando 1.855 versos.


1
Leonardo Augusto de Freitas Afonso é pesquisador e tradutor shakespeariano, doutor em Lingística
Aplicada pela Universidade Estadual de Campinas, e publicou A Tragédia de Hamlet, Príncipe da
Dinamarca (2020). 2
As citações de Lucrécia são da tradução, ainda inédita, que é parte da tese de doutorado do autor, orientada
pelo professor John Milton na Universidade Estadual de Campinas. Também do autor são as traduções de
citações em língua estrangeira, exceto quando indicado.

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