LIVRO DIGITAL ENCONTRO SHAKESPEARE 2.1 - 2023

(Shakespeare 2.1EU1AMn) #1

Lucrécia pode ser dividido em duas partes, a primeira narra os acontecimentos até
o estupro e privilegia Tarquino, a segunda privilegia a protagonista e narra desde o
estupro até seu suicídio, sendo a revolução política uma espécie de coda. Não se
tratando de um poema popular, convém esboçar uma sinopse do enredo. Roma sitiava
Ardeia e em meio a um impasse os chefes militares puseram-se a enaltecer as esposas.
Nas fontes romanas e no Argumento que antecede o poema (mas não no poema), eles
vão a Roma e Colácio tirar a prova, e Lucrécia, esposa de Colatino, vence o torneio de
castidade e desperta a cobiça do príncipe. Shakespeare inicia in media res , Tarquino já
cavalga até Colácio resolvido a estuprar levado apenas pelos elogios do marido. Ele é
recebido por Lucrécia e fica encantado com o jogo de alvo e rubro em seu rosto. Após
todos se deitarem ele salta do leito e inicia sua trajetória pela casa entremeada de um
diálogo interno sobre concretizar ou não o crime. Tarquino chega aos aposentos de
Lucrécia e admira seu corpo, ela acorda e resiste verbalmente apelando à honra e à
nobreza. Ele a silencia com a própria camisola e a estupra, por fim deixando a cena
arrependido. Lucrécia então faz um longo lamento, dirigindo-se a Noite, Oportunidade
e Tempo, e pela manhã chama uma criada e escreve ao marido. A heroína se dedica por
um tempo a uma écfrase (descrição) de uma pintura da queda de Troia, até que acorram
pai e marido, acompanhados de outros lordes romanos. Lucrécia revela o crime e o autor
e pede vingança antes de cometer o suicídio com uma faca. Numa cena sanguinolenta,
Lucrécio e Colatino disputam a primazia do luto. Brutus, então, adverte os dois e
conclama à expulsão dos Tarquinos.
Lucrécia é uma narrativa privilegiada para debatermos relações de gênero, pois
além de envolver uma violência sexual sua protagonista representa o epítome da
castidade, a mulher ideal no patriarcado, o qual Shakespeare faz Lucrécia introjetar.
Relacionada à idealidade está a representação de Lucrécia como uma posse cobiçável.
Também uma questão de gênero, é preponderante na motivação do crime a rivalidade
homossocial masculina. O embate entre os enlutados pai e marido reencena um conflito
fundamental no patriarcado pela posse da mulher. Seu suicídio, também, está ligado de
perto com relações de gênero. E no que se refere ao estupro, o emprego por
Shakespeare de um registro erótico e de linguagem sugestiva torna a obra ao mesmo
tempo mais interessante e mais problemática (ao menos para os tempos atuais).
Entretanto, nem sempre a crítica se aproveita dessas possibilidades de debate dada a
obscuridade relativa da obra, de modo que um título como Shakespeare and Feminist
Theory
(NOVY, 2017) pode ser publicado omitindo por completo Lucrécia.


Que Lucrécia é a campeã da castidade está mais explícito no Argumento, no
episódio do torneio de esposas:


Apenas Collatinus encontrou sua esposa, embora fosse tarde da noite, fiando
junto a suas criadas; as outras damas foram todas encontradas dançando e
festejando, ou em passatempos diversos. Com isso, os nobres concederam a
Collatinus a vitória, e a sua esposa a fama.
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