LIVRO DIGITAL ENCONTRO SHAKESPEARE 2.1 - 2023

(Shakespeare 2.1EU1AMn) #1

Mas também Shakespeare enfatiza sua singularidade: “Que mesmo reis podiam
mais fama esposar, / Mas rei ou par algum a dama tão sem par.” ( 21 - 22). A castidade lhe
serve de epíteto: “Para cingir pelas ancas, co’a flama vasta, / Ao amor de Colatino,
Lucrécia a casta.” (6-7). E ela mesma é consciente da fama: “E a quem danou-me a fama,
minha humilhação” (1202). Lucrécia também é a mulher ideal porque introjeta o
patriarcado e tem todas as opiniões convenientes. Segundo Khan (1997, p. 261), “há um
debate entre críticos sobre em que medida Lucrécia fala por si mesma ou, dada sua
aderência aos códigos que controlam a mulher no patriarcado, fala – mesmo que com
bravura – lendo um script que [o patriarcado] escreveu para ela.”. Primeiramente, ela se
culpa pelo adultério que teria praticado ao ser violentada: “O orador, para ornamentar
a oratória, / Meu crime à falta de Tarquino há de somar.” (815-816). Como consequência,
ela se preocupa com a ideia de o marido ser alvo de chacota – mais um exemplo de
relação de gênero homossocial: “Tampouco a ti sorrirá com senso escondido, / Nem rirá
com companheiros de teu estado” (1065-1066). Lucrécia, ao examinar a pintura de Troia,
não estende a Helena aquilo que chamamos hoje de sororidade: “Mostra a rameira que
a refrega suscitou, / Para eu co’as unhas a beleza lhe rasgar.” (1465-1466).


Outro aspecto do poema que se relaciona a questões de gênero é a representação
do casamento como uma relação de posse. Belsey (2001, p. 315) é taxativa: “Lucrécia
conta uma história sobre posse”. O narrador se lamenta que “‘Stão honra e beleza, nos
braços de seu dono, / Debilmente guardadas de um mundo de dano” (27-28) e censura
o marido indiscreto: “Ou por que deve Colatino publicar / A rica joia que bem agia
escondendo / Dos ouvidos gatunos, sua mesmo sendo?” (33-35). Belsey (2001, p. 319)
observa que


O gozo na posse, o prazer da propriedade, depende da possibilidade da perda,
ou da despossessão. O tesouro de Colatino é precioso precisamente na
medida em que pode ser roubado; sua felicidade, intensificada pelo
compartilhamento com os amigos, é com isso posta em maior risco.

Justamente por ser uma posse cobiçável, Lucrécia desencadeia uma rivalidade
homossocial masculina, que é outro tópico de relações de gênero presente no poema, e
soma-se a isso uma diferença uma diferença social: “Talvez inveja de coisa tão rica, então,
/ Incomparável, foi desdenhoso aguilhão / Em seu orgulho: subalterno se gabar / Da
sorte d’oiro que seu maior vê faltar” (39-42). Belsey (2007, p. 98) se pergunta: “O que
exatamente suscita o desejo de Tarquino? [...] será, talvez, um senso de rivalidade com
seu comandante em armas, um ressentimento provocado pela alegação de Colatino de
‘possuir’ o que um príncipe não possui?”. A rivalidade masculina já se estabelecera,
obviamente, na própria ideia dos chefes militares de comparar o valor de suas esposas.


Outro traço do poema que o faz parecer um comentário deliberado ao patriarcado
é a presença do conflito entre Lucrécio e Colatino pela primazia do luto. Isso porque o
embate entre pais e maridos pela posse da mulher é inerente ao patriarcado: “Um a

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