LIVRO DIGITAL ENCONTRO SHAKESPEARE 2.1 - 2023

(Shakespeare 2.1EU1AMn) #1

chama de sua, e o outro igualmente; / Sem que nenhum dos pleitos tenha triunfado. /
O pai diz ‘Ela é minha.’ ‘Oh, minha somente,’ / Retorque o esposo”. Beauvoir (1949, p.
113) comenta sobre a Roma antiga que “desde a Lei das Doze Tábuas, em pertencendo
a romana ao mesmo tempo a gens paterna e à gens conjugal, surgiam conflitos que se
encontram na origem de sua emancipação legal”^3.


O suicídio como resposta ao estupro infelizmente não acontece apenas nos mitos.
O prospecto de uma vida arruinada é assustador o bastante. Nessa conta, ao trauma se
soma o estigma social, o qual é resultado das relações patriarcais. Sohaila Abdulali (2019,
p. 19), vítima de abuso, comenta, em seu livro sobre o estupro, um caso ocorrido em
Bombaim em que


Um casal – eram casados – voltava para casa em sua lambreta. Alguns homens
pararam os dois na estrada e levaram a mulher. O marido foi para casa sem contar a
ninguém. Na manhã seguinte, ela voltou para casa, foi até a cozinha, despejou
querosene em si mesma, acendeu um fósforo e se consumiu em chamas. Segundo o
artigo, o marido não interveio.^4 (ABDULALI, 2019, p. 19)

A heroína do poema de Shakespeare menciona reiteradas vezes a perda da honra
como motivação para o suicídio: “Pois mata a censura meu fatal desenlace; / Morto meu
opróbrio, minha honra renasce.” (1189-1190). Ocorre que a honra é uma categoria social,
e influenciada pelo patriarcado vigente, basta ver como a honra feminina é associada
quase sempre ao comportamento sexual. De modo que também o suicídio é
determinado por relações de gênero. A razão que Lucrécia explicitamente fornece para
o ato, logo antes de se esfaquear, é de natureza homossocial: “‘Não, não,’ diz ela, ‘dama
alguma doravante / Em meu pretexto buscará atenuante.’” (1714-1715). Ou seja, ela
espera que, sob seu exemplo, todas as mulheres estupradas se culpem e, quiçá, se
matem.


Se os traços patriarcais do poema que vimos apresentando lidam com as relações
de gênero entre as personagens ficcionais em sua sociedade imaginada, é possível dizer
que a representação do estupro permite análises que transcendem esse plano e incidem
sobre a produção e a recepção da obra literária. Isso porque o autor dá um tratamento
marcadamente erótico à narrativa da violência sexual, o que está em consonância com
o primeiro dos poemas narrativos e com sua aludida reputação como poeta erótico.
Gordon Carver (2005, p. 109), que inclui Lucrécia dentre os epílios, comenta um dos
aspectos do poema que permitem tal associação, o voyeurismo: “[a] satisfação do
voyeur se correlaciona ao grau de sua sensação de apartamento recôndito e ao nível de
transgressão na ação sexual que observa – açulado ainda mais se testemunhando a ação
que é, em si mesma, um ato transgressivo”. De fato o leitor (que se presume homem) é


3
4 Tradução de Sérgio Milliet.^
Tradução Luis Reyes Gil.

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