LIVRO DIGITAL ENCONTRO SHAKESPEARE 2.1 - 2023

(Shakespeare 2.1EU1AMn) #1

chamado a acompanhar o estuprador – e o narrador – em sua jornada pela casa de
Lucrécia, a admirar seu corpo enquanto ela dorme e, enfim, a testemunhar o “ato
transgressivo”: “Ei-lo, malévolo, a alcova a adentrar, / Contemplando o leito ainda não
conspurcado. / Fechado estando o dossel, põe-se a circundar, / Seus ávidos olhos
tornando em seu cavado.” (365-368).


Um dispositivo literário que serve ao erotismo no poema é a convenção do blazon ,
cujo “uso estava firmemente enraizado em duas tradições descritivas específicas, uma
heráldica e a outra poética” (VICKERS, 1988, p. 95), sendo que Lucrécia aciona ambos os
sentidos. Primeiramente, quando Tarquino vê a heroína pela primeira vez, o rosto dela
é descrito como como um brasão: “Tal heráldica à face Lucrécia exibia, / Lutavam Beleza
rubra e Virtude alvar” (64-65). No sentido de descrição pormenorizada do corpo da
mulher, expediente poético em que Shakespeare teve a influência de Francesco Petrarca
(1304-1374), o blazon serve a enfatizar o olhar masculino que personagem, narrador e
leitor compartilham: “Um lírio de mão sob rósea face escondido, [...] Cabelos, fios d'oiro
[...] Seus seios, tais marfíneos globos venulados, [...] Alabastrina pele, veios azulados, /
Lábios de coral, e níveo queixo encovado” (386-420). Se a segunda parte do poema
privilegia a interioridade psicológica de Lucrécia, a progressão até seu estupro tem um
caráter cinematográfico. Sobre o cinema comercial dos EUA no século passado, comenta
Laura Mulvey (1983, p. 446), que nele se observa um duplo olhar,


o do espectador, em contato escopofílico direto com a forma feminina exposta
para a sua apreciação (e conotando a fantasia masculina), e o do espectador
fascinado com a imagem de seu semelhante colocado num espaço natural,
ilusório, personagem através de quem ele ganha o controle e a posse da
mulher na diegese.

Pode-se dizer que, consideradas as diferenças de suporte, a experiência vicária do
leitor do poema se assemelha à do espectador do cinema. Shakespeare enfatiza diversas
vezes, desde sua chegada a Colácio, o apetite visual do estuprador: “Pois nada nele se
via de incongruente, / Exceto exagerado assombro em seu olhar, / Que, tudo tendo, tudo
não pode bastar” (94-96).


Também salta aos olhos, em Lucrécia , o emprego de linguagem sugestiva. As
insinuações de rigidez – e flacidez – penianas são numerosas. Começam com estes
versos: “E assim as mais chãs forças ele insufla agora, / Que, pelo porte de seu líder
impelidas, / Incham a lascívia, tal minutos à hora; / E, como o capitão, ficam intumescidas”
(295-298), e terminam após o crime: “Quando tesa a carne, Desejo à Graça enfrenta, /
De carne se serve; decaída ela então, / O culpado rebelde clama remissão.” (712-714).
Também no progresso do príncipe pela casa, ele mesmo uma prolepse para a penetração,
são enfatizadas as travas que são arrombadas – “uma rúptil trava, tão somente [...]
rompe a trava sua mão culpada” (339, 358) – sugerindo um hímen, e associando o crime
a um defloramento. As genitálias não deixam de ser insinuadas, em metáforas militares:

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