LIVRO DIGITAL ENCONTRO SHAKESPEARE 2.1 - 2023

(Shakespeare 2.1EU1AMn) #1

a mão dele sobre o seio dela é um “Rude aríete , marfíneo muro a bater” (464), e o coito
forçado é assimilado à ação de “abrir a fenda e invadir esta cidade” (469). Na passagem
em que Tarquino encontra a luva (316-318), há uma concentração de palavras com duplo
sentido sexual: glove (vagina), needle (pênis/vagina), sticks (copular), finger (pênis),
pricks (pênis).


Outro elemento do conteúdo sexual de Lucrécia é o geoerotismo. Segundo Daniel
Koketso (2015, p. 115), “[a] representação de um trato de terra em termos sugestivos de
geoerotização, e a descrição de uma mulher como se fosse uma entidade geográfica é
uma prática comum na literatura inglesa. Trata-se de uma influência da Era das
Navegações.”. No poema, os seios de Lucrécia são “tais marfíneos globos venulados, /
Dois mundos virgens que inconquistados restavam” (407-408), e a mão do agressor
“marcha a fincar seu pendão / No seio nu, de toda a terra o coração” (438-439). Além de
ao colonialismo, a passagem erótica relaciona-se ainda à morte. Georges Bataille (1897-
1962) escreve que “[d]o erotismo é possível dizer que é a aprovação da vida até na morte”
e que “[r]esta [...] uma relação entre a morte e a excitação sexual.” (BATAILLE, 1987, p.
17, 18). O narrador de Shakespeare comenta sobre os fios de cabelo animados pela
respiração dela (400-406) em termos de eros e tânatos:


Cabelos, fios d’oiro, com o alento brincando,
Ó castos devassos! Devassa castidade!
“Eis no mapa da morte a vida triunfando,
Sombra da morte na viva mortalidade.
Em seu sono, uma à outra reforça a beldade,
Como não fora entre as duas luta renhida,
Vida vivesse na morte, morte na vida.

Apesar de advertências contra “projetar retrospectivamente sobre épocas
anteriores uma categoria, a pornografia, que só veio a atingir verdadeira consistência
com o desenvolvimento da pornografia audiovisual” (MAINGUENEAU, 2010, p. 94), há
autores que a aplicam para descrever Lucrécia. Peter Smith (2009, p. 413) tem as
relações de gênero mais do que um caráter sexualmente explícito como critério; para
ele, o poema


está embasado (o que não surpreende em uma sociedade patriarcal) na
hierarquia de masculino acima de feminino e então pode com alguma
razoabilidade ser descrito como pornográfico. De fato, esta hierarquia sócio-
sexual é considerada por Lynda Boose a própria função da pornografia:
“Embora suas funções ideológicas sejam sem dúvida numerosas, a principal
tarefa que a literatura pornográfica desempenha [...] é propiciar um meio para
reconstituir e circular as normas da sociedade sobre o poder masculino e a
dominância masculina”.
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