LIVRO DIGITAL ENCONTRO SHAKESPEARE 2.1 - 2023

(Shakespeare 2.1EU1AMn) #1

encontra-se Ariel, um espírito prisioneiro de Próspero, que se submete aos seus desejos
em troca de uma futura liberdade.


Em A tempestade estas relações são descritas com “naturalidade”, sendo que a
contestação de Caliban a respeito de sua condição de escravo perde efeito frente à sua
brutalidade, que o leva a ser representado como um ser cruel e merecedor do controle
e punição de seu senhor. Em oposição a isso, a trajetória de Próspero pode ser vista
como heroica, no sentido de que a obra conclui com a recuperação do título de duque
de Milão e o retorno à Europa, sendo este desdobramento compreendido como justo.
A diferença entre ambos, portanto, não está pautada a partir de parâmetros de justiça,
mas sim de um ideal eurocêntrico, hegemônico na época de Shakespeare. Indo além,
pode-se dizer que a forma como estas diferenças estão dispostas na obra estabelece
uma ideia de justiça pautada não a partir de critérios universais de igualdade – algo que
só poderia ser pensado a partir do Iluminismo, um século e meio depois −, mas sim
através de uma hierarquia que nega ao “Outro”, a Caliban, o princípio da alteridade (sua
fala é incompreensível para Próspero, parece um “balbucio”), fundamental no
reconhecimento de sua humanidade – o que reflete em sua aparência, descrita por
Próspero como “bestial”.


Ernest Renan (1823 – 1892), um pensador francês, quase duzentos anos depois, em
1878 e, posteriormente, em 1880, escreveu duas sequências para A tempestade ,
intituladas Caliban, suíte de la tempête ( Caliban , continuação de A tempestade ) e L’eau
de jouvence, suíte de Caliban
(A água da juventude, continuação de Caliban). Tal como
sua origem shakespereana, as obras de Renan são peças de teatro, mas desta vez, como
seus nomes indicam, Caliban ocupa o lugar de destaque, e apesar da pequena distância
temporal de dois anos entre as obras de Renan, existem diferenças nas formas como o
personagem é representado.


Antes de prosseguir, é importante destacar que Ernest Renan ficou conhecido por suas
posturas conservadoras, pautadas em grande parte em uma concepção social-
darwinista na qual o europeu, branco, seria superior às demais “raças”. Nesse sentido,
Caliban, “monstruoso” e “inculto”, representaria a democracia, fundamentada a partir
de uma “vontade popular” insaciável e corrupta, sempre entregue aos seus desejos e
apetites. O escritor faria parte então de uma corrente de críticos da democracia cuja

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