O cientista político e historiador Antonio Mitre, em seu ensaio Fenômenos de massa na
sociedade oligárquica , chama a atenção para o contexto de publicação de Ariel : o início
do século XX foi caracterizado pelo aumento da participação das “massas” no cenário
político e social latino-americano, como pode ser notado pelo surgimento da Unión
Cívica Radical, na Argentina, e a Revolução Mexicana já nas duas primeiras décadas.
Rodó percebia a necessidade de educar as camadas populares, como forma de impedir
que a esfera política fosse invadida pelo que ele considerava a barbárie.
Embora fosse mais progressista que Renan, é importante ressaltar que Rodó não
rompeu com uma percepção eurocêntrica, pautada em valores difundidos pelas culturas
greco-romana e hispânica. Em sua versão de A tempestade , Caliban continua sendo o
elemento negativo, enquanto Ariel e Próspero são vistos como positivos.
É interessante chamar atenção também para a história das ideias e de como essa
metodologia historiográfica nos ajuda a compreender o fato de que as ideias tem sua
própria história, o que significa que elas mudam ao longo do tempo. Sendo assim, não
só A tempestade de Shakespeare tem sua história através do tempo, mas também o tem
as ideias contidas nela. As obras que analisamos aqui fazem parte de ambas. Elas não só
deslocam os referenciais e os elementos apresentados por Shakespeare, adaptando-os
às questões de sua época, como realizam o que Jacques Rancière chamou de “partilha
do sensível”, ou seja embaralham as sensibilidades presentes em determinado
contexto, alterando as formas de perceber e sentir determinadas questões presentes
no momento de sua produção e leitura. A título de exemplo, a democracia não era uma
questão para Shakespeare – o que seria claramente anacrônico −, enquanto para Renan
esta seria um problema, ao passo que Rodó a via como positiva. Quando se trata de
literatura, mais importante que apresentar os pontos de vista dos autores sobre
determinadas questões, as obras literárias colaboram para alterar a percepção pública
que se tem delas. Como iremos ver a seguir, os personagens criados por Shakespeare
afetaram a própria identidade das ex-colônias europeias e da América Latina.