LIVRO DIGITAL ENCONTRO SHAKESPEARE 2.1 - 2023

(Shakespeare 2.1EU1AMn) #1

III – A tempestade caribenha


No ano de 1967, o martinicano Aimé Cesaire (1913 – 2008) publicou o livro Une tempête
(Uma tempestade). Já conhecido por sua obra mais famosa, Discurso sobre o
colonialismo
(1950), o intelectual retomou Shakespeare, reinterpretando sua obra a
partir do ponto de vista do colonizado e do homem negro, como expresso no subtítulo
da obra: adaptation pour un théatre nègre (“adaptação para um teatro negro”).


A obra de Cesaire representa uma virada na interpretação dada aos personagens de
Shakespeare, pois inverte a lógica que havia sido repetida por Renan e Rodó. A partir do
martinicano, Caliban passou a ser mostrado como vítima de Próspero, símbolo do
imperialismo europeu. Como em todo processo de dominação colonial, não basta o uso
da força, sendo também os valores da metrópole imputados ao colonizado. Assim, a
língua e os padrões estéticos se juntam ao uso da força e da ciência como instrumentos
de domínio, fazendo não só com que Caliban se submeta a Próspero, mas com que o
primeiro chegue ao ponto de quase anular sua humanidade ao longo do processo. Ao
confrontar Próspero, Caliban diz que este “terminou por impor uma imagem sobre ele”.
Cesaire está assim fazendo das palavras do personagem veículo de seu próprio discurso
anticolonialista, denunciando a escravização (“Você não me ensinou nada de fato. A não
ser a tagarelar em sua língua para compreender suas ordens”^4 ); a permanência do
conhecimento nas mãos da metrópole (“Sua ciência, você a mantém de forma egoísta,
só para você, fechada nos grossos livros que estão aí”^5 ); a conquista e usurpação de seu
território (“Sem você? Seria simplesmente o rei! O rei da ilha”^6 ); e também
metaforizando o processo de formação do subdesenvolvimento, não só a nível
econômico, mas, principalmente, como uma crença imposta, como um olhar que o
próprio colonizado lança a si mesmo, resultado desse processo de aniquilação da
humanidade (“E você mentiu muito para mim, mentiu sobre o mundo, mentiu sobre eu
mesmo, que terminou por me impor uma imagem de mim: um subdesenvolvido”^7 ). Isso


4
No original: « Tu ne m’as rien appris du tout. Sauf, bien sûr a baragouiner ton language pour comprendre
tes ordres 5 ». CESAIRE, Aimé. Une tempête. Paris : Éditions du Seuil, 1969, p.25.
No original: « Ta Science, tu la gardes égoistement pour toi tout seul, enfermée dans le gros livres que
voilà 6 ». Idem, ibidem.
7 No original: «^ Sans toi? Mais tout simplement ler roi! Le roi d’île^ ». Idem, ibidem.^
No original: « Et tu mas tellement menti, menti sur le monde, menti sur soi-même, que tu as fini par
m’imposer une image de moi-même : Un [sic] sous-développé [...] ». CESAIRE, Aimé. Une tempête. Paris :
Éditions du Seuil, 1969, p.88.

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