LIVRO DIGITAL ENCONTRO SHAKESPEARE 2.1 - 2023

(Shakespeare 2.1EU1AMn) #1

se reflete no nome, que o Caliban de Cesaire afirma haver sido dado por Próspero como
anagrama de “canibal”. Essa forma animalizada, bestial, que Caliban acreditava ter,
longe de ser concreta, foi uma construção definida e imposta por Próspero, que, tal
como no processo de colonização dos territórios africanos, terminou por impor às
pessoas negras padrões de beleza e estética europeus, assim como metáforas
animalizadas de seus corpos, destruindo sua autoestima e aperfeiçoando os
mecanismos de controle metropolitanos.


Cesaire então transforma a metáfora do canibal na metáfora da própria tomada de
consciência do colonizado, que passa a assumir suas características como positivas. Ao
final da obra, diferente da versão shakespeariana na qual Próspero retorna à Itália,
ambos os personagens permanecem na ilha, o que remete à irreversibilidade do
processo colonial, na qual os destinos da colônia e da metrópole não podem mais ser
dissociados, obrigados que estão a coexistir mesmo após a independência do
colonizado.


A importância da virada interpretativa de Cesaire pode ser atestada na obra Caliban , do
poeta e ensaísta cubano Roberto Fernández Retamar (1930 – 2019), que se em forma
remete à obra de Rodó, retomando o ensaio, em conteúdo encontra-se mais próxima
do intelectual martinicano. Novamente o contexto altera a argumentação e o livro do
cubano, publicado em 1971, retoma o tema do colonialismo, desta vez sob a ótica da
Revolução Cubana. Nesse sentido, não se pode deixar de lado o fato de que o ano de
sua publicação coincide com o da realização do Congresso Nacional de Educação e
Cultura, no qual as diretrizes político-culturais da Revolução consolidaram o que Fidel
Castro havia dito dez anos antes, em seu discurso Palabras a los intelectuales : “dentro
de la Revolución, todo, contra la Revolución, nada”.


Alinhado à Revolução, Fernández Retamar se apropriou da tempestade de Cesaire para
repensar a identidade latino-americana a partir do colonialismo/imperialismo,
identificando-se, tal qual seu antecessor, com Caliban. Na linguagem metafórica que
veio sendo construída desde a obra de Shakespeare – na qual, nos relembra Fernández
Retamar, “Caliban/canibal” vem de “Caribe” – o ensaísta cubano associou Próspero à
metrópole e Ariel ao intelectual, que pode decidir por qualquer um dos dois lados.

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