LIVRO DIGITAL ENCONTRO SHAKESPEARE 2.1 - 2023

(Shakespeare 2.1EU1AMn) #1

Ofélia, a transformação pela palavra
O curta-metragem não se ocupou de representar Ofélia morta, mas viva e forte, atenta
e reagindo ativamente aos conflitos e dores pelos quais passava. O caminho pelo qual esta
força se apresenta para a personagem é a palavra. É a palavra que guia os passos de Ofélia
rumo à liberdade, para fora do desejo de Hamlet, para fora dos mandos de seu pai, para fora
da obediência ao rei, para fora da subserviência à que as mulheres em sua época – e ainda
hoje – estavam submetidas. As palavras permitem à personagem se colocar e se ver como um
“ser para si” e não um “ser para o outro”. Conforme destaca Tiburi (2010), Ofélia é para
Hamlet um “ser para o outro”,
Para inverter este padrão nas relações a que Ofélia estava sujeita, o curta-metragem
se utilizou de palavras proferidas por Hamlet, alteradas e apropriadas por Ofélia em seu
próprio contexto. Essa quebra de expectativa no uso das palavras é a busca de Ofélia por
seguir seu próprio caminho, é a constituição de Ofélia “em si e para si”, uma inversão que
permite que a narrativa seja construída do ponto de vista da Ofélia.


O que é a palavra? Nomes? Códigos? Símbolos? Significados? Sentidos? Sensações?
O que se afirma quando se afirma uma palavra?
O que se nega quando se nega uma palavra?
Eu poderia morar em uma casca de noz e ainda assim se conseguisse alcançar todas
as palavras do universo de todas as línguas de todos os seres eu seria governante do
universo, pluriverso, multiverso inteiro.
Palavras, palavras, palavras (OFÉLIA, Viva, 202 1).

As palavras permitem que Ofélia verbalize seus desejos, necessidades, angústias e suas
escolhas diante dos novos caminhos que se abrem após libertar-se de sua prisão. Uma das
leituras de Hamlet que representa Ofélia em uma perspectiva mais emancipatória e
autoconsciente é a peça Hamlet-máquina, do autor Heiner Muller. Na peça, o autor apresenta
Ofélia se insurgindo contra as relações de abuso e violência que lhe foram impostas durante
sua vida.
Eu sou Ofélia. Aquela que o rio não conservou. A mulher na forca. A mulher com as
veias cortadas. A mulher com excesso de dose SOBRE OS LÁBIOS DE NEVE, a mulher
com a barriga no fogão a gás. Ontem deixei de me matar. Estou só com meus seios,
minhas coxas, meu ventre. Arrebento os instrumentos do meu cativeiro - a madeira,
a mesa, a cama. Destruo o campo de batalha que foi o meu lar. Escancaro as portas
para que o vento possa entrar e o grito do mundo. Despedaço a janela. Com as mãos
sangrando rasgo as fotografias dos homens que amei e que se serviram de mim na
cama, mesa, na cadeira, no chão. Toco fogo na minha prisão. Atiro minhas roupas
no fogo. Eximo do meu peito o relógio que era o meu coração. Vou para rua, vestida
em meu sangue (MULLER, 1977 ).

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